terça-feira, 11 de outubro de 2011

As cabeças rolantes

E ninguém fala dos estudantes tchecos. Quando os jovens da França começaram a virar carros, a arrancar paralelepípedos e a incendiar a Bolsa — as manchetes se assanharam, em todos os idiomas. Ninguém entendia nada.

A primeira Revolução Francesa fora nítida e profunda. Derrubou-se a Bastilha, decapitou-se Maria Antonieta e instalou-se o Terror. Mas sabíamos por que as coisas aconteciam e por que rolavam as cabeças. Mas a recente agitação estudantil teve um defeito indesculpável: — faltou-lhe o Terror.

O mundo ainda faz a pergunta sem resposta: — "Onde estão as cabeças cortadas?". Simplesmente, não estão, nem houve. Ninguém decapitou ninguém. E, como não havia gasolina, ninguém morria, nem atropelado.

Pode-se dizer que nem tudo se perdeu no caos estudantil. Eu diria que se salvaram algumas frases. Fala-se muito da prosa francesa. E, de fato, as maiores bobagens ditas em francês têm um insuperável requinte estilístico.

Além de arrancar a capa de asfalto e pôr fogo nos carros, os estudantes faziam as belas frases. Uma dela dizia assim: — "É proibido proibir". Houve um dia em que todos os muros parisienses não diziam outra coisa. Por toda a parte, o berro vital: — "É proibido proibir".

E todos os fatos eram possíveis. Numa assembléia de estudantes, levantou-se um barrigudo: — "Quero falar. Sou um capitalista". Um jovem líder se levanta: — "Fala o camarada capitalista". E o gorducho disse ao que veio. Em seguida, o poeta Aragon pede a palavra. Um estudante diz: — "Aqui, qualquer um pode falar, inclusive o último dos traidores". Aragon é stalinista e, como tal, o último dos traidores, não só da França, não só da poesia, como da própria pessoa humana. Falou, como o camarada canalha.

Naturalmente, vocês querem saber qual figura fez Sartre no lírico tumulto daqueles dias. Ah, Sartre, Sartre! Quando o filósofo esteve no Brasil, o nosso papel foi, se me permitem dizê-lo, meio indigno. Sim, os nossos intelectuais se comportaram como se fôssemos a mais deprimente subcolônia espiritual. Fui ver uma de suas conferências.

Quando ele apareceu, a platéia só faltou lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. E foi aí que eu descobri que há, sim, admirações abjetas.

Mas o francês não admira outro francês com esse estupor. E os estudantes de lá trataram o filósofo de alto a baixo. Quase não houve conversa. A rapaziada ouvia Sartre com irônica indulgência. Por fim, o gênio levantou-se, humilhadíssimo; disse: — "Vocês têm mais imaginação do que eu". Saiu de lá trôpego e derrotado. Os jovens o enxotaram e assim começou a solidão de Sartre.

Mas a grande frase da quase Revolução Francesa foi mesmo a do general De Gaulle. O velho herói parecia um mito exausto. A jovem massa levava cartazes assim: — "Fora De Gaulle", "De Gaulle Assassino", "Morte para De Gaulle". O general estava fora do país. Sim, o mito passeava. Quando voltou à França, declarou para o seu povo: — "Eu sou a Revolução!". Foi um espanto mundial. E todos sentiram que De Gaulle era o último "eu" do século. Olhem o nosso mundo, virem e revirem a nossa época. Não há outro "eu". E o herói setuagenário parece um momento da insânia humana. Só um louco, em sua danação, pode-se julgar um "eu".

Nem precisamos ir tão longe. Vamos olhar o Brasil.

Antes, porém, de falar do Brasil, quero lembrar os versos que Rainer Maria Rilke escreveu para o próprio túmulo. Só me lembro de um momento do epitáfio. É quando diz o poeta que o morto sente "a volúpia de ser ninguém". Aí está o mistério da nossa época. Fora um insano, como De Gaulle, que se imagina "eu ", não há mais as fortes e crispadas individualidades, que ofendiam e humilhavam os demais com a sua dessemelhança genial.

Mas deixemos de lado os outros países e os outros homens. O que me interessa é o Brasil, é o brasileiro e, em especial, o nosso teatro. Sempre digo que só os profetas enxergam o óbvio. O que eu chamo de óbvio é este fato: — o teatro brasileiro acabou antes de começar.

Na altura de 1940, sentiu-se aqui uma enorme tensão criadora; e cheguei a pensar que ia nascer a nossa tragédia. Toda uma geração de autores, diretores, atores parecia saturada de potencialidade. Essa plenitude durou pouco. De repente, estancou o processo teatral. Falei do "nascimento da tragédia" no Brasil. E o que aconteceu foi espantoso: a "tragédia brasileira" ainda não nasceu e já está decadente. Entendem? Decadente antes de nascer. Todo o maravilhoso ímpeto inicial se esvaiu e se
corrompeu no show idiota.

Mas há pior e, repito, há pior. O show ainda tem uma relação com o teatro. Acontece que os diretores, autores, atores e atrizes abandonam o palco. Cabe então a pergunta: — e onde estão eles? Cada qual assume a forma impessoal, numerosa e irresponsável da assembléia, do comício, da comissão, do manifesto, da passeata e da unanimidade. Só agimos, só sentimos, só amamos e só odiamos em massa.

Sim, estamos todos massificados. E cada um sente, como no epitáfio de Rilke, a volúpia de ser ninguém. O sujeito se dissolve na passeata, na assembléia, na unanimidade. E ninguém faz as coisas simples e profundas que o teatro exige.

Em vez de realizar o Hamlet ou A dama das camélias, a classe desfila da Cinelândia à Candelária. E basta.

E, por isso, dizia eu que o teatro está morto no Brasil. Morreu a partir do momento em que nos politizamos.

Felizmente, a nossa traição ao "drama brasileiro" tem nobilíssimas razões e, eu diria mesmo, razões sublimes. Não escrevemos peças, nem as representamos e, tampouco, as dirigimos. Em compensação, salvamos o Vietnã e, ao mesmo tempo, resolvemos o problema da fome mundial. Dirá alguém que a fome do homem resistiu a Cristo, Buda, Alá, Maomé, Marx, Freud. Mas os citados falharam, por azar, inépcia, incompetência, má-fé, corrupção.

O que não acontece com a Classe Teatral. Bem me lembro da nossa última assembléia.

Enquanto vociferávamos, o Pentágono foi surpreendido a ouvir-nos, atrás das portas; e do seu lábio vil pendia a baba elástica e bovina da pusilanimidade.
[26/7/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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