quinta-feira, 21 de julho de 2011

O menino Pelé

Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Albert Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais.

Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — Ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O que nós chamamos de realeza é, acima de todo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias.

Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?”. Ele respondeu, com a ênfase das certeza eternas: — “Eu”. Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?”. E Pelé: — “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.

Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”.

De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha.

Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível em qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau.

Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.
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Nelson Rodrigues, 08/03/1958
(uma crônica sobre Santos 5 x 3 América, em 25/02/1958, no Maracanã, pelo Torneio Rio-São Paulo).

O bandeirinha artilheiro

Antigamente, o bandeirinha era um superfósforo apagado. Funcionava como uma espécie de gandula lateral. E era patético, era comovente, vê-lo correr atrás de uma bola e devolvê-la. Esse marmanjo, esse barbado tinha uma grandeza na humildade de suas funções. Com o profissionalismo, o bandeirinha passou a ter uma súbita importância. Na pior das hipóteses, era um gandula remunerado. Continuava correndo atrás da bola, mas estava ganhando 25 mil-réis por jogo.

Passa-se o tempo e, de uma maneira insidiosa, macia, o bandeirinha deixou de ser aquele são Francisco de alpercatas. Tinha voz ativa. Já não era recrutado entre os pés-rapados, os borra-botas do esporte.

Vejamos: quem é o bandeirinha em nossos dias? Juízes de primeira categoria e, numa palavra, sujeitos qualificados, que entendem de futebol, de regra, que dão palpites a torto e a direito. Mas nunca, em toda a história do futebol carioca, brasileiro e mundial, houve um caso como o do Fla-Flu de anteontem.

Amigos, o cronista esportivo é o cidadão mais convencional do mundo. Quando um time vence outro, o cronista repete, textualmente, o que vem dizendo desde a Guerra do Paraguai: "Vitória merecida". Nunca lhe ocorreu a hipótese, ainda que tênue, ainda que vaga, de uma vitória imerecida. Não. E mesmo quando o derrotado apresenta muito mais jogo e foi traído por um golpe de azar, o comentarista de futebol fala na "maior objetividade do vencedor". Ainda agora, no último Fla-Flu, o jornalista especializado finge não perceber a superioridade tão nítida do Tricolor.

Por que venceu o Flamengo e por que perdeu o Fluminense? Para a imprensa, o Rubro-negro foi mais objetivo e dominou no segundo tempo. É, como se vê, a imagem desfigurada do clássico. Até uma zebra no Jardim Zoológico perceberia a influência capital que teve, no resultado, um dos bandeirinhas. Mas a crônica não toma conhecimento deste fato sem precedentes ou, melhor, não atribui a este fato inédito uma importância fundamental.

Amigos, pela primeira vez, em toda a minha experiência futebolística e, mais do que isso, em toda a minha experiência terrena, eu vejo um bandeirinha artilheiro! Pois foi o que aconteceu no Fla-Flu. Um bandeirinha decidiu o jogo e com que tranqüila e arrepiante desenvoltura! Segundo o meu colega Nei Bianchi, o simpático auxiliar de juiz tem o apelido de "Caixa Econômica". Ele é "Caixa Econômica", como poderia ser "Banco de Crédito Real de Minas Gerais", "Banco Boavista S.A.", "Prolar".

Muita gente não foi ao campo e não pode formar uma idéia, mesmo aproximada, do que aconteceu. O fato é que, em dado momento, a bola chega ao bandeirinha e do bandeirinha parte para um jogador do Flamengo. O gol resultou, só e só, dessa intervenção que eu chamaria de sobrenatural. Toda a imprensa, com uma erudição marota, diz que, como o juiz, o bandeirinha é ponto morto. Ora, meus amigos, o senso comum é o que há de mais incomum. Porque se o árbitro da peleja possuísse um pingo de senso comum, teria achado o fato estranhíssimo. Das duas, uma: ou o bandeirinha estava fora do campo e a bola saiu, ou estava dentro do campo e, nesse caso, vamos perguntar: Por quê, senhores, Por quê?

Amigos, vamos falar de coração para coração, de consciência para consciência. Os jornais passam por alto sobre o episódio, citam o bandeirinha como um detalhe. Não entra na cabeça dos meus confrades que o bandeirinha não está ali para passear dentro do campo. O juiz é ponto morto porque está obrigado, funcionalmente, a permanecer no coração mesmo do jogo. Mas o bandeirinha que, sem quê, nem para quê, entra em campo e serve de tabela, está praticando uma óbvia, uma clara, uma escandalosa ilegalidade. Escrevem os meus confrades que a lei não menciona a hipótese. E daí? Não menciona, porque a coisa é evidente por si mesma.

Na ocasião, o Flamengo estava vencendo por 1x0, graças a um tiro de Henrique, desferido com incrível felicidade. Mas o Fluminense, muito bem armado, seguro de si e do jogo, perseguia o empate. E, súbito, vem o magistralíssimo passe do bandeirinha, passe tão exato, preciso, perfeito, que faria Didi, ou Zizinho, ou Domingos da Guia estourar de inveja. Enfim, uma coisa é certa: se as coisas continuam assim, hei de ver, em futuro próximo, bandeirinhas cobrarem pênaltis e correrem, com Pelé, no páreo dos artilheiros.

O pobre na filosofia popular

A sabedoria popular também pode ser considerada como uma filosofia do povo que, sem nunca haver alisado os bancos das universidades e sem tomar conhecimento das idéias dos grandes pensadores, tem suas idéias próprias e estabelece seus conceitos através dos provérbios, dos ditos e das legendas de caminhões.

Assim acontece com relação ao negro, à mulher, à sogra, aos baixinhos e ao pobre, alvos preferidos por essa sabedoria, por essa filosofia paralela que salta aos nossos olhos com um sabor pitoresco, com uma graça que nos faz pensar e nos deixa admirados por conta desse dom que o povo tem de mostrar o quanto é sábio ao emitir seus conceitos.

O pobre continua vivendo dias negros, dando nó em pingo d’água, subindo em bananeira com tamancos, dando beliscão em fumaça, fazendo toda sorte de ginástica para, não sei como, sobreviver.

Vejamos, agora, como o pobre é considerado, como é visto pelo povo através dos provérbios, das legendas de caminhões e dos ditos populares:

- Galinha só aparece na mesa do pobre quando um dos dois está doente.
- Pobre só enche a barriga quando morre afogado.
- Pobre com bagagem perde o trem.
- Ser pobre como rato de igreja.
- Arquivo de pobre é um prego na parede.
- Pobre é como pneu: quanto mais trabalha mais fica liso.
- Pobre com pouco se alegra.
- Pobre com rica casado, mais que marido é criado.
- Cinema de pobre é janela de trem.
- Rico sai de casa e pega o carro; pobre sai de casa e o carro pega.
- Alegria de pobre dura pouco.
- Pobre é cavalo do Cão andar montado.
- Pobre é o Diabo.
- Se cabelo fosse dinheiro pobre nascia careca.
- Pobre só engole frango quando joga de goleiro.
- Pobre só come carne quando morde a língua.
- Pobre é como punho de rede: só anda com a corda no pescoço.
- Pobre, mas não da graça de Deus.
- Pobre muda de patrão, mas não de condição.
- Pobre não é nem o que o rico foi.
- Pobre só anda de carro quando vai preso.
- Ladrão que entra na casa de pobre só leva susto.
- No dia em que chover comida o pobre nasce sem boca.
- Pobre não morre cedo.
- Pobre não tem amigo e nem parente.
- Pobre só levanta a cabeça quando quer comer pitomba.
- Televisão de pobre é espelho.
- Quando o rico geme o pobre é quem sente a dor.
- Pobre só sai do aperto quando desce do ônibus.
- Pobre nunca tem razão.
- Pobre quando acha um ovo, o ovo está goro.
- Quando o rico corre é atleta e quando o pobre corre é ladrão.
- Pobre é como pneu velho: só vive na lona.
- Pobre quando mete a mão no bolso só tira os cinco dedos.
- Pobre só vai prá frente quando a polícia corre atrás.
- Pobre só recebe convite quando é intimado pela polícia.
- O despertador do pobre é o galo do vizinho.
- Dinheiro de pobre é como sabão: quando ele pega, escorrega.
- Coceira na mão do pobre é sarna e na mão do rico é dinheiro.
- Pobre que arremeda rico, morre aleijado.
- Pobre só vai pra frente quando leva uma topada.
- Piscina de pobre é poça de lama.
- Rico fica gordo e pobre fica inchado.
- Pobres, nós todos somos: miseráveis quem se faz são os donos.
- Pobre só acha a vida doce quando está chupando pirulito.
- O rico bebe para se lembrar e o pobre para esquecer.
- Dinheiro na mão de pobre só faz baldeação.
- Rico bêbado é divertido: pobre bêbado é pervertido.
- Pobre é como papel higiênico. Quando não está no rolo está na merda.
- Champanha de pobre é Sonrisal.
- Em pé de pobre é que o sapato aperta.
- Entre ricos e pobres não há parentesco.
- Deus dá o pão, mas o pobre não tem dentes.
- Em cara de pobre é que o barbeiro aprende.
- Pobre só herda sífilis.
- O pau enverga no cu do rico, mas só quebra no cu do pobre.
- O pão do pobre só cai com a manteiga para baixo.
- O pobre só vive de teimoso que é.
- O pobre é como limão: nasceu para ser espremido.
- Pobre não casa, junta os trapos.
- Pobre é como cachimbo, só leva fumo.
- Se merda fosse dinheiro, pobre nascia sem cu.
- Rico em casa de pobre é a desgraça da galinha.
- Pobre em casa de rico ou é dinheiro emprestado ou fuxico.
- Pobre só descansa quando plantado de olho pra cima para comer capim pela raiz.
- Mais vale um pobre honesto do que um rico ladrão.

Fonte: Folclore etc & Tal

Solidão, velhice e seu folclore

Dizem que a solidão é a maior doença social do século, afirmativa que me parece fugir à verdade, de vez que o ser humano sempre conviveu com este problema durante toda a História da humanidade.

0 cristianismo, tem embalado o sonho religioso de tanta gente através dos séculos, ensina que Deus fez Adão à sua imagem e semelhança e, depois de lhe dar o sopro da vida, constatou que o primeiro homem vivia muito solitário no luxuriante Paraíso Terrestre, desconhecendo qualquer outro seu semelhante, vendo apenas sua imagem refletida na tranqüila superfície das águas, sem ter com quem falar. Foi quando Deus, aproveitando o momento em que Adão dormia profundamente, tirou-lhe uma costela e dela fez Eva, pondo termo ao problema de sua solidão, dando origem a outros, próprios de quem tem vida em comum.

Acredito, entretanto, que sendo a solidão a maior doença social dos séculos, o problema tenha se agigantado nos dias em que vivemos, em conseqüência da densidade demográfica dos grandes centros urbanos, responsável pela diminuição do relacionamento social entre as pessoas, o que não acontece nas pequenas cidades, onde a vida social é muito mais ampla, por força de as pessoas se conhecerem melhor.


Nas megalópolis, o número de pessoas que não se conhecem cresce assustadoramente, fazendo com que o relacionamento social se restrinja aos membros da mesma família, aos vizinhos ou aos que habitam os edifícios de apartamentos. No mais, as pessoas apenas se conhecem no local de trabalho, gerando, assim, uma dualidade sócio-familiar. Acredito até mesmo que a ausência das cadeiras nas calçadas - hábito de alguns séculos e que ainda hoje persiste nas pequenas cidades - tenha a ver com o enclausuramento a que estamos condenados.

Acontece, também, que o isolamento das pessoas nos grandes centros e até mesmo nas cidades menores, possa ser uma decorrência da televisão que muito tem a ver com a diminuição da vida em sociedade, escravizando as pessoas através de suas telinhas mágicas. Outra causa do isolamento social é o clima de insegurança nas ruas - palco cotidiano de assaltos e de toda a sorte de violência -fazendo com que as pessoas não saiam tanto de casa, como acontecia antigamente.

As sorveterias (as caixinhas de sorvetes, de diversos sabores, são adquiridas nos supermercados), os cinemas (os filmes que chegam pela televisão ou por intermédio das locadoras), os barzinhos (as cervejas estão nas geladeiras), não levam mais as pessoas à rua, com exceção dos adolescentes, onde a insegurança é um fato e o orçamento doméstico da classe média não comporta despesas extraordinárias.

A violência, a insegurança, o medo, o cansaço após uma longa semana de trabalho, o orçamento doméstico apertado, a televisão, a moradia em apartamento, estão fazendo com que o homem, nas grandes cidades, fique cada vez mais em casa, cada vez mais só, convivendo com sua solidão. Uma solidão que adoece as pessoas, social e organicamente, fazendo-as irritadiças, provocando discussões, entre os casais, capazes de solapar até mesmo o equilíbrio da vida conjugal, criando, às vezes, uma outro forma de solidão ainda mais triste, que é a solidão a dois.

A solidão é, assim, uma doença social que faz maior número de vítimas entre as pessoas da terceira idade. Os adolescentes, os jovens, que mal começaram a descobrir os caminhos da vida, com exceção dos introspectivos e dos sonhadores, não se deixam dominar pela solidão. É que eles ainda estão sentindo as primeiras chamas de esperança, arquitetam seus projetos impulsionados pela aventura, têm uma meta a atingir.

Os da terceira idade, pelo contrário, já percorreram muitos caminhos, tiveram suas decepções, sofreram adversidades, acordaram de todos os sonhos, rotinaram. a existência e se encontram no crepúsculo da vida, ruminando e vivendo um passado remoto, povoado de saudades, esperando apenas seu ponto final. E tudo acontece ainda com mais impetuosidade quando as pessoas vestem a roupa dos anos vividos e se entregam, de corpo e espírito, aos problemas da velhice. Mas se os velhos tiverem o espírito jovem e encararem a velhice como um estágio natural, essa velhice tomará outro rumo, mudará de feição.

A solidão dos velhos tem as suas causas, entre as quais a da família. Se o terceiridoso tiver uma família numerosa - uns cinco filhos, por exemplo - sempre ficarão um ou dois deles em sua companhia e a casa não ficará tão vazia. Se tiver uma família de apenas dois filhos, corre o perigo de ficar só quando casarem ou forem morar em outra cidade. E se morrer um dos cônjuges a situação se complica ainda mais porque o sobrevivente ficará em companhia de seus achaques, impossibilitado de viver sozinho, e a solução será morar em um abrigo, onde se sentirá ainda mais só, imprestável, abandonado, desprezado. E, na opinião de Montherlant, "os velhos morrem (mais depressa, acrescento) porque já não são mais amados".

A solidão e a velhice constituem um problema muito complexo, merecedor de um estudo mais aprofundado. A minha experiência de vida, com meus setenta e seis anos bem vividos, me dá o direito de saber alguma coisa sobre o assunto. Com o espírito jovem, pai de sete filhos, com algumas noras e netos, com a casa sempre cheia aos sábados e domingos, tenho tido essa alegria, duas vezes por semana, de festejar a vida. E, de mãos postas, agradecer a Deus por me ter dado vivê-Ia, ao lado da companheira de tantos anos.

Será que não existe nenhum remédio, nenhuma coisa que se possa fazer para, pelo menos, diminuir ou melhorar os efeitos da solidão? Ter um ou vários hobbies não deixa de ser uma alternativa bem interessante de evitar os cismares, preenchendo os dias longos. Colecionar caixas de fósforo, lápis de propaganda comercial, latinhas de cerveja, garrafas ou rótulos de cachaça, ouvir música, fotografar os assuntos que ainda não foram fotografados, explorar as ondas curtas no rádio, fazer radioarnadorismo e ter outros hobbies bem ajudam os terceiridosos a fugir da solidão.

No Rio de Janeiro, existiu, ou ainda existe, o Clube dos Solitários, onde as pessoas que se sentem sós, se encontram para trocar idéias, dançar, começar romances.

0 folclore da velhice é muito rico. Provérbios, ditos populares, a dança dos velhos nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, o serra-velho durante a Páscoa, a poesia popular em verso e o anedotário, tendo a velhice como tema, são de uma riqueza sem par. 0 povo costuma dizer:

- Velho que se cura, cem anos dura.

- Queda de velho não levanta poeira.

- Carreira de velho é choto.

- Não há moço doente, nem velho são.

- Velho não se senta sem dizer "Ui!" e nem se levanta sem dizer "Ai!".

- Velho? Só vinho, perfume, dinheiro e viúva rica.

- Velho é como panela, rede e balaio: só se acaba pelos fundos.

Diz do velho, muito velho, que ele é "mais velho do que a Sé de Braga", que "já pendurou as chuteiras", "que está mijando nos pés", "que é bananeira que já deu cacho", "que está de cachimbo apagado", "que é mais velho do que a posição de cagar de cócoras".

Há velhos que não gostam de ser chamados de velhos e dizem que "velho é o tempo", que "velho é a estrada". Dizem que, simplesmente não são velhos, mas apenas usados.

Em matéria de amor, os velhos não foram esquecidos: "Velho apaixonado com pouco tempo está casado", "Velho com amor, jardim com flor" ou "Velho com amor, morte em redor". A sabedoria popular chega a ser cruel quando se refere à vida sexual dos velhos: "Ao velho recém-casado, reza-lhe por finado", "Velho casado com moça de poucos anos, como temos", "Não se deve acreditar em três coisas: lágrimas de viúva, arrufos de namorados e arranco de velho"e "0 que acaba com velho e vento pelas costas, chuva na cabeça e mulher pela frente".

Dizem os moços: Quem gosta de velho é rede, reumatismo e filha do INPS", "Papagaio velho não aprende a falar". Os velhos revidam: "Pote velho é que esfria a água", "Coco velho é que dá azeite", "A cavalo velho, capim novo", "Em panela velha é que se faz comida gostosa". Já o anedotário dos velhos é terrivelmente impróprio para menores. Escolhi estas três anedotas, as mais leves que me lembrei:

0 velho tomou o café da manhã, pegou o jornal e começou a ler. De repente, gritou:

- Mulher, vem cá!...

- 0 que é João?

- Veja este anúncio: "Mulher solitária e rica precisa de homem para manter relações sexuais, pagando R$ 500,00 por cada coito". Tá vendo, mulher! Agora vou ganhar dinheiro, já estou empregado.

A mulher olhou o velho marido e retrucou:

- Não está vendo, João, que você não pode sustentar a família com apenas R$ 500,00 por mês?

Depois de cinqüenta anos de casados, marido e mulher voltaram à Europa para comemorar a data. Procuraram, em Paris, o mesmo hotel, o mesmo apartamento e, no dia certo, pediram o jantar no quarto. Luz de vela, champanhe do bom e a velha vestiu a camisola do dia, guardada com todo o carinho.

- Maridinho eu estou me lembrando da nossa lua de mel aqui. Você foi tão carinhoso... Me acariciou, me beijou. Eu até já estou sentindo um calor danado dentro de mim, como na primeira noite.

- Calor coisa nenhuma, mulher. É que seus peitos caíram dentro da sopa.

0 coronel Ambrósio andava pela casa dos 70 anos quando enviuvou. Até aí tudo normal, natural até. Mas aconteceu o pior: o coronel Ambrósio, homem de muitas posses, se apaixonou por uma menina de dezoito anos, bonita, bem feita e que, com sua faceirice e dengos deixou o coronel gamado. A família entrou em pânico. Todos os filhos conversaram com o velho, dizendo das desvantagens do casamento, que a moça só podia estar interessada no dinheiro dele, etc. Ninguém conseguiu demover o coronel dos seus propósitos de casar com a menina. 0 velho estava enfeitiçado, mesmo. Os filhos do coronel mandaram chamar o irmão mais velho que morava na capital e era médico, prá ver se ele conseguia resolver o assunto, acabando com o casamento. 0 filho mais velho chegou e, logo no outro dia, foi direto ao assunto:

- Estou sabendo que o senhor vai casar, é verdade?

- É meu filho. A Nazinha é moça de muitas prendas e eu não posso viver sem ninguém perto de mim.

- Mas, pai, o senhor não vê que ela, com dezoito anos, vai casar com os seus setenta anos por causa do dinheiro?

- Tem nada não, meu filho. 0 dinheiro é muito e dá prá todos. E eu darei uns cobres a ela e um pedaço de terra. Não vai fazer falta a vocês, que ficarão com toda a fortuna, que é grande.

0 filho mais velho, o médico resolveu dar a última cartada:

- Mas, pai um casamento desse pode ser fatal, mortal.

- Tem nada não, filho. Se ela morrer eu caso com outra.

Aí está a solidão, a velhice e seu folclore. Teria muito mais o que contar não fora o espaço ser pequeno. E aqui fica um apelo: amem os velhos, que já geraram vidas, trabalharam, caçaram quimeras, lutaram, travaram batalhas e tudo fizeram para que os jovens existissem e fossem felizes. E fossem os velhos do amanhã.

Fonte: Boletim da Comissão Catarinense de Folclore.

Stanislaw Ponte Preta

Sérgio Porto (Sérgio Marcus Rangel Porto), cronista, radialista e compositor, conhecido também como Stanislaw Ponte Preta, nasceu no Rio de Janeiro (RJ) em 11/1/1923 e faleceu na mesma cidade em 30/9/1968.

Iniciou carreira jornalística escrevendo para a revista Sombra, em 1949. Dois anos depois estava no jornal Diário Carioca, em 1953 na Tribuna de Imprensa e em 1954 na Última Hora, do Rio de Janeiro, onde, sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, deu início às crônicas satíricas que lhe deram fama.

Escreveu em 1953 a Pequena história do jazz e no ano seguinte foi colaborador da Revista de Música Popular, fundada por seu tio Lúcio Rangel e Pérsio de Morais. Com Lúcio Rangel e o pintor Santa Rosa fundou a revista O Mundo Ilustrado.

Em 1956 escreveu com Nestor de Holanda TV para crer, e com Luís Iglésias, no ano seguinte, Quem comeu foi pai Adão, revistas teatrais encenadas com êxito. Escreveu shows musicais para boates, entre os quais o levado em 1964 na boate Zum-Zum, do Rio de Janeiro, com Araci de Almeida e Billy Blanco e apresentação dele próprio.

Como compositor destacou-se com o Samba do crioulo doido, gravado pelo Quarteto em Cy no LP Em Cy maior, em 1968, pela Elenco. O samba glosa a dificuldade dos compositores de escolas de samba quando obrigados a estudar a História do Brasil para compor os enredos dos desfiles.

Suas crônicas começaram a ser reunidas em livro a partir de 1961, com Tia Zulmira e eu, culminando em 1966 com o Febeapá, festival de besteira que assola o país. Foi em certo momento, pela linguagem, estilo, temas e críticas, a encarnação da “alma carioca”.

Fonte: MPB Cifrantiga.