segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O inferno

Quando ela disse que tinha um filho, um garoto, já de doze anos, Romualdo caiu das nuvens:

— Filho?

— Você não sabia?

Foi enfático:

— Nem desconfiava.

E ela:

— Pois tenho. Fez doze anos, está no colégio.

— Engraçado!

— Por quê?

Ele foi, então, gentilíssimo. Disse que ela não parecia mãe de ninguém e muito menos de um garoto, quase rapaz. E, na verdade, a idade do menino o espantara. Lucília, com seu tipo frágil e pequeno, o ar de menina, um quê de infantil nos olhos, no sorriso, nas maneiras, parecia uma garota solteirinha. E não foi somente de espanto a sua reação. Experimentou também um certo alarme. Aquele filho, aquele marmanjo, inesperado e taludo, assustava. Foi, porém, bastante hábil e educado para dissimular o desconforto e bastante cínico para a seguinte promessa:

— Vou ser para ele um segundo pai!

— Deus me livre!

— Como?

Lucília suspirou:

— Eu te explico. Vamos entrar ali, um momentinho.

O FILHO

Entraram numa sorveteria. Depois de sentados e servidos, ela foi tomando sorvete e explicando.

— O Odésio não pode saber, nem desconfiar.

Esta era uma condição que ela impunha. Ou ele aceitava ou, então, nada feito. Romualdo ainda ponderou:

— Acho que você exagera!

— Ora, Romualdo, tem dó! Você se esquece que é casado, que vive com outra, que tem filhos, esquece?

— Realmente.

— Pois é, meu filho, pois é!

Eram seis horas quando Romualdo a largou, num ônibus apinhadíssimo. Ela fez a viagem em pé. A promiscuidade, ali, era uma coisa abjeta. Espremida, imprensada, triturada em meio dos passageiros, teve uma sensação de ultraje, de profanação, de aviltamento. Um cavalheiro que ia saltar no poste seguinte foi varando a massa humana; ao passar por ela quase a derruba. A sensação do ultraje recrudesceu em Lucília. Resmungou:

— Animal!

Mas ia bastante atribulada com seus problemas. E não ligou mais para os contatos indesejados e brutais que, nos ônibus cheios, são inevitáveis. O drama de Lucília era, em suma, o seguinte: o medo, o pavor, de que o filho enfim soubesse... A opinião, o julgamento do garoto era a coisa que mais a impressionava no mundo. Temia-o mais do que o Juízo Final. Ao mesmo tempo, tinha loucura por Romualdo e a vida sem ele seria de uma monotonia medonha. Pendurada no ônibus, gemeu interiormente:

— Oh! meu Deus do céu!

HISTÓRIA DE AMOR

Então, começou a mais doce, a mais sofrida história de amor. Voltava dos seus encontros com Romualdo em sobressalto. O filho estava sempre na rua, jogando bola ou em brincadeiras turbulentas com amigos de sua idade. Uma vez, deu um chute, e com tanta infelicidade, que a unha do dedo grande do pé saltou longe. O negócio inflamou; e Lucília, quando chegou de uma entrevista amorosa, tomou-se de vergonha e de remorso. Pensou, lavando o pé machucado: enquanto ela se divertia com um homem, além do mais casado, o filho, sozinho, estava precisando de seus cuidados. Vamos que fosse uma coisa pior que um simples esfolamento de dedo. Que remorsos não sentiria? O menino, corajoso, quase não se queixava. E era ela quem tinha de perguntar:

— Está doendo?

— Mais ou menos.

E Lucília:

— Quando estiver doendo, diga!

No dia seguinte, Lucília apareceu triste. Suspirava:

— Que vida!

Romualdo acabou se enfezando:

— Que vida, por quê?

Ela, então, pôs as cartas na mesa:

— Reconheço que a culpada sou eu, porque você, sendo casado, eu não devia... Romualdo, não está direito.

Fez uma pausa, antes de completar:

— Se, ao menos, você vivesse só pra mim!

Foi brutal:

— Ora, Lucília, ora! No mínimo, você está querendo que eu deixe minha mulher! Sou capaz de apostar!

Despediram-se sem carinho. E ele, ressentido, mal se deixou beijar. Disse, apenas:

— Vai com Deus, vai!

Nessa noite, ele fez confidências a um amigo. Quando este soube que havia um filho no meio, um marmanjão de doze anos, foi categórico:

— Abacaxi autêntico!

E Romualdo insistiu:

— Você não acha um desaforo que ela queira, imagine, que eu deixe minha mulher?

— Evidente!

No primeiro encontro, Romualdo rompeu fogo:

— Das duas uma: ou você muda de cara, faz uma cara alegre, ou, então, minha filha, vamos acabar com esse negócio. Já não estou gostando, nada, nada!

Já o termo negócio pareceu a Lucília de uma abominável grosseria, de um prosaísmo ultrajante. Além disso, a agressividade, como se ela fosse uma qualquer!
Exaltou-se, também:

— Não grite! Está pensando que eu sou o quê?

— Grito, pronto, grito! Não topo chiquê! Comigo, não!

Ela não disse uma, nem duas. Apanhou a bolsa, que estava em cima da mesa: olhou-se, instintivamente, no pequeno espelho; e, num passo lento, encaminhou-se para a porta. Parou um segundo, uma fração de segundo. Esperava talvez que Romualdo a chamasse. Teria, então, voltado e tudo terminaria numa reconciliação feroz. Mas ele esbravejou:

— Mulheres é que não faltam, inclusive a minha! Podia haver pontapé mais claro, mais insofismável, mais absoluto? Saiu para nunca mais.

O ABANDONO

Ela tinha do próprio casamento e do marido morto uma lembrança penosa. O marido era uma nobre alma, que vivia para a esposa e para o filho. Mas tudo que ele fizesse, de bom, de heróico, de sublime, esbarrava diante de sua falta de amor. E isso, essa falta de amor, era pior do que o ódio. Crispava-se quando o pobre-diabo vinha fazer-lhe festa. Houve uma vez em que não pôde, não agüentou, explodindo:

— Não me beija! Não quero seu beijo! Que coisa aborrecida!

Ele já estava doente, na ocasião. Foi talvez este episódio que antecipou o fim.

Seis meses depois, ela, sem nenhum luto interior, tinha a sua primeira experiência amorosa, na pessoa do casado Romualdo. Viu, então, que o marido a interessava menos que o mata-mosquito anônimo que vinha pôr creolina no ralo. Foi uma paixão feroz que acabou, como vimos, da maneira mais estúpida do mundo.

Durante dias, Lucília, numa tristeza obtusa, esperou um telefonema, um bilhete, um recado. Nada, absolutamente nada. Depois soube, por terceiros, que ele andava com uma datilógrafa extranumerária numa autarquia; tinham sido vistos no Passeio Público, onde tiravam retratos no lambe-lambe. Lucília, fora de si, encerrava-se no quarto, ficava horas de bruços, na cama, chorando. Já o julgamento do filho não a interessava mais. O garoto, diante do seu pranto, perguntava:

— Que é que a senhora tem, mamãe?

— Não aborrece! Não amola! Sai daqui, anda!

Na presença do filho, ligava para o escritório do bem-amado. De lá, queriam saber quem era.

Lucília se identificava. Então, a resposta infalível era: “Não está”. Uma vez, porém, coincidiu que o próprio atendesse. Mas, quando percebeu que era ela, explodiu:

— Me deixa em paz, sim? Quero sossego! Vê se não me chateia.

O filho não fazia comentário. Era uma testemunha muda de tudo. Guardara, porém, o nome e o repetia: “Romualdo, Romualdo”. Conhecia-o, de vista. Pensava nele dia e noite, com essa obstinação de amor ou de ódio. E já não saía mais de casa, não jogava mais bola; passava as horas ao lado de Lucília, de olhos muito abertos, como se esse desespero o fascinasse, apesar de tudo. Ouviu quando a mãe, numa crise maior, amaldiçoou o homem que a abandonara:

— Tomara que ele morra, meu Deus! Fique debaixo de um automóvel! Tomara, meu Deus!

Por fim, ela já não queria mais nada; ou, por outra, queria morrer. Não comia e seu desmazelo, de atitudes, de roupas, de higiene, era aterrador. Passava dias com uma mesma combinação. Outras vezes, do fundo do seu desespero, fazia a reflexão: “Há três dias que não escovo os dentes”. O filho se abraçava a ela. Chorava:

— Não fique assim, mamãe! Não chore mais!

Certa vez, na rua, o garoto ouviu dizer que não se nega nada a quem está morrendo, a quem vai morrer. O “último” pedido de alguém, justamente por ser o “último”, é alguma coisa de terrível e sagrado, que cumpre obedecer, sob pena de maldições tremendas.

Então, afirmou:

— Ele volta, mamãe! Volta, sim! Juro por Deus!

A VOLTA

Romualdo estava, no poste, esperando o ônibus. O garoto desconhecido aproximou-se e disse que era filho de d. Lucília e falou mais:

— Volta para minha mãe. É meu “último” pedido.

Romualdo não entendeu. Ou só entendeu quando o menino se atirou debaixo de um ônibus que passava a toda a velocidade. A morte foi instantânea.

Alta madrugada apareceu mais alguém para fazer quarto ao menino: era o assombrado, o enlouquecido Romualdo. Voltava, sim. E continuou voltando, escravo do “último pedido” de uma criança. Quando, finalmente, ela se cansou dele e quis deixá-lo, Romualdo lembrou, apenas, o desejo do menino. Então Lucília compreendeu que estavam unidos, e para sempre, dentro de um inferno.

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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Banho de Cléopatra

Era muito relaxado. Quase todas as manhãs, Ritinha fazia a mesma pergunta:

— Não vai tomar banho?

Mentia:

— Estou gripado.

E ela:

— Não mente, Hildegardo, não mente! Gripado onde?

O rapaz acabava perdendo a paciência.

— Ritinha, escuta! Te mete com a tua vida! Mania de dar palpite!

Mas a esposa era teimosa:

— Ao menos, passa álcool no pescoço e nas orelhas. Passa, Hildegardo! É tão feio homem de orelha suja.

Hildegardo acabava passando uma lição de moral:

— Escuta, mulher, escuta! — E foi enfático: — O que importa é lavar debaixo do braço. E basta! Vê se não enche! Você já está enchendo!

Ritinha suspira:

— Olha, meu filho! Eu não tenho nada com isso. É pra teu bem.

No dia seguinte, a mesma cena. O marido esbravejava: “Ih, você é chata!”.

O CASAL

Entre parênteses, era louca pelo marido. Ia dizer às amigas: — “Gosto tanto do Hildegardo, mas tanto, que olha: — se ele morresse, eu acho que não me casava outra vez”.

Protestavam:

— Mulher precisa de casamento, o que é que há? Ou você é fria?

Batia na madeira, mais do que depressa:

— Isola!

Havia, porém, na sua felicidade, um defeito: — o banho semanal do marido. Como nas anedotas, Hildegardo só tomava banho aos domingos. Menina de um asseio mórbido, que tomava, às vezes, três banhos por dia, Ritinha não entendia aquilo. Repetia, na maior boa-fé: — “É feio, meu filho, é feio!”. E o seu pavor era que a criada notasse e fosse contar na vizinhança. Toda vez que o marido entrava no banheiro, ela ia abrir o chuveiro. Explicava:

— Deixa o chuveiro aberto pra criada pensar que estás tomando banho.

Ele achou o expediente genial. Fora esse detalhe, eram felicíssimos. Até que, um dia, Hildegardo acorda antes da mulher e a sacode:

— Mulher, escuta! Vai botar o meu banho!

Vesga de sono, não entende:

— Banho?

E Hildegardo, feliz, o olho rútilo:

— Exato. Olha: — hoje, quero um banho de banheira. Caprichado.

Sentada na cama, olhava o marido:

— Que piada é essa?

Esfregando as mãos, ele fazia um risonho escândalo:

— Piada como? Você não me chama até de porco? Pois é. Resolvi ser limpo, pronto. Prepara o banho, mulher. Anda, capricha!

Tocada pela alegria do marido, enfiou os pés nas sandálias e pôs o quimono em cima da camisola:

— Até que enfim, puxa vida!

ASSEIO

Enquanto a mulher abria as torneiras, ele, diante do espelho, escovava os dentes. Disse:

— Banho morno!

O dentifrício escorria-lhe da boca como uma efervescente baba. Continuou:

— Mulher, quero sair daqui como o sujeito mais limpo do Rio de Janeiro! E olha: — vou te incumbir de uma missão especialíssima. É a seguinte: — quando eu acabar de tomar banho, você vai me limpar as orelhas com álcool. As orelhas e pescoço.

Escovou os dentes, fez a barba. A banheira já estava pela metade. Em calça de pijama, nu da cintura para cima, estufava o peito, com uma sensação de plenitude. De vez em quando, Ritinha experimentava a temperatura da água. No seu quimono rosa, esgarçado nos cotovelos, suspira:

— Sabe que eu estou te estranhando!

O marido acha graça:

— Vocês, mulheres, são engraçadíssimas! Escuta, escuta! Você sempre não reclamou? Pois bem. No dia em que resolvo ser limpo, você estranha?

Olhava aquele marido que era um garotão forte e bonito:

— Estou brincando! Você não vê que eu estou brincando, seu bobo?

Hildegardo veio beijá-la na testa:

— Minha mulher, você é a maior. Vem cá, vem cá. Põe água-de-colônia na banheira.

Era demais: — “Água-de-colônia?”. Teimou:

— Sim, senhora! Água-de-colônia! Quero um banho de Nero, um banho de Cleópatra!

Sem uma palavra, foi apanhar o litro de água-de-colônia. Faz o comentário:

— Você está exagerando!

LIMPEZA

Guarda o litro no pequeno armário e vai saindo:

— Toma teu banho, que eu vou fazer um negócio.

O fato é que Hildegardo demorou-se, na banheira, como uma noiva. Pensava, esfregando-se com ferocidade: — “Banho de casamento!”. Quando saiu, sentia-se mais leve. Gritou:

— Mulher, vem esfregar as orelhas! O pescoço!

Ela respondeu do quarto:

— Agora não posso.

Então ele molha a extremidade da toalha no álcool e passa no pescoço, nas orelhas. Em seguida, põe perfume no cabelo, debaixo do braço, no peito. Imagina: — “Devo estar cheiroso como um bebê”. E já ia saindo quando teve uma lembrança: — “Os pés!”. Inunda os pés de talco. E, então, enrolado na toalha, passa do banheiro para o quarto. Mas estaca na porta. Pergunta, estupefato:

— Que piada é essa?

Via Ritinha, muito entretida, passando a gilete nos seus ternos, um por um. A mulher acabava de abrir, em dois, o último paletó. O marido se arremessa:

— Está doida? Bebeu?

Ela ergue o rosto em desafio:

— O senhor não vai sair, não, senhor. Vai ficar aqui, comigo. Marido limpo eu quero pra mim!

Na sua raiva, segura-a pelos dois braços e a sacode. Ritinha, porém, não teve medo:

— Você arranjou uma cara e vai se encontrar com ela. Por isso tomou banho. Mas vai ficar, ouviu? Vai ficar. Quero a tua limpeza pra mim.

Larga a mulher. Com um esgar de choro, olha aquelas tiras de fazenda. Súbito, dá um repente na mulher. Puxa-o pelo braço:

— Deixa de ser burro! Eu tenho mais classe do que a gaja que você arranjou. Vem cá, vem! Burro!

Puxou-o para si. Deu-lhe um violento beijo na boca.

Meia hora depois, ele, respirando fundo, dizia:

— Você é a maior! A maior!

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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Deus protege os bêbados

O cara chega em casa bêbado como uma cabaça na água. E a sua mulher furiosa grita:

- Foi bebê né ?

E ele num porre, só responde também gritando:

- Fui sim! Eu fui bebê, fui adolescente, fui jovem e hoje sou um véio cansado de você, muié!!

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O bêbado entra em um velório, cantando parabéns:

-Parabéns pra você, nesta data queridaaa!

Mas logo é reprendido na entrada da casa:

-Moço, que isso? Isso não é aniversario, isso aqui é um velório!

-Por isso que desconfiei! Nunca tinha visto um bolo tao grande!

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O bêbado passou a noite toda ligando pra casa do dono do bar:

- Que hora você vai abrir o bar?

O dono:

- Mas rapaz, você já ligou mais de 100 vezes! Só vou abrir as 9 horas.

O bêbado respondeu:

- É porque você me deixou preso no bar e não tem mais nenhuma pinga pra mim tomar.

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No mesmo bar, o bêbado se aproxima de uma mesa onde se encontravam dois rapazes muito parecidos:

- Viiige! Acho que estou vendo demais!!

Ao que um dos rapazes, apressou-se em esclarecer:

- Não tem nada de errado contigo, não! É que nós somos gêmeos!

- Todos os quatro?

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O camarada saiu do bar, completamente bêbado.

Cambaleou de um lado a outro, escorando nas paredes. Caminhou mais um pouco e parou em frente a uma freira, que lhe sorriu com profunda piedade. Ele olhou para ela, bem nos olhos, e deu-lhe um soco no meio da testa. A mulher saiu rolando pelo chão e caiu, desmaiada. O bêbado ficou parado, olhando aquele monte de pano atirado na calçada. Balançou mais um pouco, pra frente e pra trás, e reclamou, revoltado:

- Que decepção! Esperava mais de você Batman!

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Um bêbado chato entra num bar e pede pro balconista:

- Ô amigo, coloca duas aí. Uma pra mim e outra pra você.

O balconista que era o dono do bar responde:

- Só para o senhor. Eu não bebo.

- Vai fazer essa desfeita comigo amigo? Eu não bebo sozinho! Bota duas aí e bebe comigo!

O cara pra se ver livre do bêbado, coloca as duas doses. Eles tomam e o bêbado fala:

- Ó amigo, amanhã eu venho aqui, bebo mais uma e pago as duas.

O pau d`água foi embora e voltou no dia seguinte com a mesma conversa. Novamente o dono do bar colocou duas doses e os dois tomaram. O bêbado prometeu voltar no dia seguinte e pagar as três. Fez isso umas três vezes. Por fim o dono do bar que já tava puto, chamou os seguranças do bar e falou com eles:

- Amanhã, quando esse bêbado chato vier aqui, vocês peguem ele, levem ele lá pra fora e mete a porrada, quero ver esse cara desmaiado de tanto apanhar. Vamo vê se ele volta aqui pra beber fiado outra vez.

E assim fizeram. O Bêbado chegou, eles levaram o chato pra fora e desceram o cacete nele.

No dia seguinte o bebum apareceu novamente na maior cara de pau, todo arrebentado e pediu pro dono do bar:

- Bota uma branquinha aí pra mim.

Admirado o dono perguntou:

- Você não vai mandar eu colocar uma dose pra mim não?

- Não, quando ocê bebe, cê fica muito nervoso.


Fontes: OraPois; Portal do Humor.

O espírito

O caso que vou contar passou-se há um bom par de anos, quando no Rio de Janeiro o espiritismo não tinha ainda o caráter de seriedade nem os ilustres prosélitos que hoje tem, mas começava a ocupar a atenção e a roubar o tempo a algumas pessoas de boa fé.

Entre essas figurava o Garcia, bom homem, cujo único defeito era ser fraco de inteligência, defeito que todos lhe perdoavam por não ser culpa dele.

O nosso herói não se empregava absolutamente noutra coisa que não fosse comer, beber, dormir e trocar as pernas pela cidade. Tinha herdado dos pais o suficiente para levar essa vida folgada e milagrosa, e só gastava o rendimento do seu patrimônio.

Casara-se com d. Laura que, não sendo formosa que o inquietasse, nem feia que lhe repugnasse, era mais inteligente e instruída que ele. Esta superioridade dava-lhe certo ascendente, de que ela usava e abusava no lar doméstico, onde só a sua vontade e a sua opinião prevaleciam sempre.

O Garcia não se revoltava contra a passividade a que era submetido pela mulher: reconhecia que d. Laura tinha sobre ele grandes vantagens intelectuais e, se era honesta e fiel aos seus deveres conjugais, que lhe importava a ele o resto?

Sim, que d. Laura já não lembrava do Frederico...

Quem era esse Frederico? Um elegante guarda-livros, que a namorava quando o Garcia apareceu iluminado pela sua auréola de capitalista, pondo-o imediatamente fora de combate.

Ou fosse para melhorar de situação ou porque realmente o magoasse a vitória fácil do dinheiroso rival, o guarda-livros, ainda d. Laura não se tinha casado, mudara-se para São Paulo, e nunca mais souberam dele, nem ela, nem o Garcia.

Num dia em que este, ano e meio depois de casado, perguntou, a gracejar, pelo primeiro namorado de sua mulher, d. Laura, no generoso intuito de o tranqüilizar, respondeu, simulando indiferença:

— Não sei... Parece que morreu...

— Morreu?...

— Pelo menos disseram-me que sim... em São Paulo... Não sei ao certo, nem isso me interessa.

Por esse tempo já o Garcia tinha sido iniciado, por algum amigo, nos mistérios do espiritismo, e fazia parte de um grupo, um dos primeiros que organizaram nesta cidade, para estudar os fenômenos revelados nos livros de Allan-Kardec.

Os associados reuniam-se todos os sábados para consultar a mesa giratória, evocar espíritos e conversar com defuntos célebres. Produziam-se, realmente, alguns fenômenos, que impressionaram profundamente o espírito débil de Garcia, a ponto de fazer com que ele não pensasse mais noutra coisa a não ser em almas de outro mundo.

Tinha o nosso espírita grande curiosidade de evocar por meio de tal mesa giratória o espírito de Frederico, apenas para verificar se estava morto o seu antigo rival; abstinha-se, porém, de o fazer pelo receio de que os colegas do grupo, sabendo do namoro da sua mulher, o tomassem por ciumento e ridículo.

Mas uma noite, em que a sessão ainda não começara, e estavam presentes apenas dois companheiros, que mal o conheciam, o Garcia pediu-lhes que o ajudassem a evocar o espírito de um amigo.

Os outros aquiesceram. Sentaram-se os três e espalmaram as mãos sobre uma pequena mesa de três pés, que em poucos minutos começou a mexer-se como um ser animado.

— Está presente o espírito que evoquei? - perguntou o Garcia em voz sinistra e cavernosa. - Se está presente, dê duas pancadas!

A mesa inclinou-se duas vezes, e obedeceu.

— Faça o favor de dizer o seu nome por letras do alfabeto! - continuou o Garcia no mesmo tom.

A mesa deu seis pancadas.

— F - disseram os dois companheiros.

— Adiante!

A mesa deu dezoito pancadas.

— R - repetiram os espíritas.

— Adiante!

A mesa deu cinco pancadas.

— E - explicou um dos três.

— F, R, E - disse o outro.

E em tom de comando, acrescentou:

— Se é Frederico, dê uma pancada forte!

A mesa deu uma pancada tão violenta, que partiu a perna.

O Garcia ergueu-se lívido e assombrado, gaguejando:

— Estou satisfeito.

— Mesmo porque é preciso consertar a mesa - concluiu um dos companheiros.

— Com duas pernas é impossível fazê-la trabalhar.

O que preocupava o grupo já não eram os espíritos invisíveis nem os fenômenos da mesa, que se poderiam atribuir a simples efeitos do magnetismo animal; o que todos ali desejavam era ver um espírito materializado, e para isso tinham empregado grandes esforços, mas sempre vãos.

Nessa ocasião estavam presentes no Rio de Janeiro não só o espírito como o corpo, em carne e osso, do Frederico, vindo de São Paulo para tratar de um negócio urgente, de três a quatro dias.

Apesar da pressa que trazia, o guarda-livros achou um momento disponível para passar pela casa do Garcia, na esperança de ver - apenas ver - d. Laura. Poupem-me os leitores explicar-lhes como não só a viu, como lhe falou; e até entrou para a sala..

O caso é que, naquela noite, a mesma da evocação, voltando o Garcia para os seus penates mais cedo que de costume, pois que a sessão não se realizara por falta de número, encontrou o Frederico no corredor, saindo para a rua, e ficou tão estupefato que o deixou sair sem lhe dirigir a palavra.

O pobre-diabo foi direto ao quarto de sua mulher, que, ouvindo-lhe os passos apressados, se sentara mais que depressa numa cadeira de balanço, a ler um livro, fingindo a maior tranqüilidade.

— Que quer isto dizer?

— Isto quê?

— Esse homem que acaba de sair daqui?

— Um homem?! Daqui?! Tu estas doido!...

— Oh, senhora! Pois não esteve aqui um homem?

— Estás doido, repito.

— Eu vi-o!

— Não podias ter visto.

— Vi-o, e era o Frederico!

D. Laura soltou uma risada.

— Ora o Frederico! Um morto! Olha, sabes que mais? O tal espiritismo transtorna-te o miolo! O melhor é deixares-te disso!

O Garcia pensou:

— Um morto... Sim, ele está' morto... e ele então materializou-se para aparecer-me... Não foi outra coisa!

No sábado seguinte, o Garcia apareceu radiante ao grupo:

— Meus amigos, tenho que lhes fazer uma comunicação muito importante: sou médium vidente!

— Deveras? - exclamaram todos em coro.

— É o que lhes digo! Sábado passado, ao entrar em casa, encontrei no corredor uma pessoa que morreu em são Paulo.

— Conte-nos isso - ordenou o presidente do grupo - Você não teve medo?

— Eu? Nenhum! O espírito, sim, o espírito é que, pelos modos, teve medo de mim, porque assim que me viu deitou a fugir...


por Artur Azevedo

Pensamentos e visões de um decapitado

Tríptico: Primeiro minuto, segundo minuto, terceiro minuto

Há pouco ainda rolaram algumas cabeças do cadafalso. Nessa oportunidade ocorreu ao artista a idéia de pesquisar o problema: a cabeça teria a capacidade de pensar por alguns segundos depois de separada do tronco?

Eis o relato dessa pesquisa. Em companhia do Sr. ... e do Sr. D., magnetopata especializado, tive acesso ao cadafalso; lá solicitei ao Sr. D. estabelecer contato entre mim e a cabeça cortada, por intermédio de novos procedimentos que lhe pareciam adequados. O Sr. D. concordou. Fez alguns preparativos e então esperamos, não sem emoção, a queda de uma cabeça humana.

Assim que chegou o momento fatal, caiu a terrível lâmina, fazendo estremecer toda a armação e rolar a cabeça do julgado pelo horrível saco vermelho.

Ficamos com o cabelo em pé, mas não tivemos mais tempo para nos afastar. O Sr. D. me segurou pela mão (eu estava sob a sua influência magnética) levou-me até à cabeça em convulsões e me perguntou: O que está sentindo? O que está vendo? A emoção me impedia de responder na hora. Mas logo depois gritei, com extremo pavor: Horrível! A cabeça pensa! Agora estava querendo me livrar do que inevitavelmente iria acontecer, mas era como se um pesadelo me segurasse. A cabeça do executado enxergava, pensava, e sofria. Quanto tempo durou? Três minutos, como me disseram. O executado deve ter pensado: trezentos anos.

O que sofre quem é executado assim não pode ser reproduzido pela linguagem humana. Aqui me limito a relatar as respostas que dei a todas as perguntas, enquanto eu, por assim dizer, estava me identificando com a cabeça cortada.

Primeiro minuto: sobre o cadafalso

Eis as respostas: Um ruído inconcebível rugia em sua cabeça. O ruído do machado que se abaixa. – O delinqüente acredita que foi atingido pelo raio, não pelo machado. – Estranho, aqui debaixo do cadafalso está a cabeça no chão, pensando que ainda está em cima; acredita que ainda faz parte do corpo, e ainda está esperando o golpe que a deve separar.

Um sufoco horrível. – Respiração, impossível. – É uma mão não-humana, sobrenatural, desabando como uma montanha sobre a cabeça e o pescoço. De onde vem essa mão horrenda e inumana? A vítima, resignada, a identifica nesse momento: púrpura e armelino roçam os dedos.

Sofrimentos mais atrozes estão por suceder.

Segundo minuto: debaixo do cadafalso

A pressão transformou-se em corte. Somente agora o executado toma conhecimento de sua situação. – Com os olhos mede a distância que separa a cabeça do corpo, e reflete: a minha cabeça está cortada.

O delírio aumenta freneticamente. Parece ao executado que sua cabeça está pegando fogo e girando em torno de si mesma... E nesse frenesi, um pensamento inconcebível, tresvariado, indizível, apodera-se do cérebro moribundo: Será possível? O homem decapitado ainda tem esperança. Todo o sangue que lhe ficou pulsa mais rapidamente pelas veias e agarra-se à esperança.

Chega o momento em que o executado pensa que está estendendo as mãos crispadas, trêmulas, em direção à cabeça. É o instinto que nos faz tapar com a mão a ferida aberta. Isso se dá com o intuito, o horroroso intuito de recolocar a cabeça em cima do tronco, para guardar mais um pouco de sangue, mais um pouco de vida... Os olhos do torturado reviram-se nas órbitas sangrentas... o corpo torna-se rijo como granito...

É a morte...

Não, ainda não.

Terceiro minuto: na eternidade

Ainda não é a morte. A cabeça continua pensando, e sofrendo. Sofre o fogo que queima, sofre o punhal que estraçalha, sofre o veneno que convulsiona, sofre nos membros que são serrados, sofre nas entranhas que são arrancadas, sofre na carne que é cortada e moída, sofre nos ossos que são fervidos devagar em óleo quente. Todos esses sofrimentos juntos não chegam a dar uma idéia do que se passa com o executado.

Nesse momento, um pensamento o faz estarrecer:

Já está morto e deverá continuar a sofrer assim? Talvez por toda a eternidade?...

Porém, a existência humana lhe escapa; aos poucos lhe parece confundir-se com a noite; de leve ainda passa uma névoa, mas ela também enfraquece e se esvanece; escuridão total... O decapitado está morto.

por Antoine Wiertz (Pintor belga 1806 - 1865)

Óleo de cão

Chamo-me Boffer Bings. Nasci de pais honestos, malgrado muito pobres. Meu pai era fabricante de óleo de cão, e minha mãe tinha, ao pé da igreja da vila, um pequeno gabinete, onde eliminava bebês indesejados. Já na minha infância aprendi os processos da indústria.

Não apenas ajudava o meu pai procurando os cães para seu caldeirão, como também minha mãe me encarregava freqüentemente da missão de me desfazer dos despojos de seu trabalho no gabinete.

Para me desincumbir desse mister, às vezes precisei de toda minha natural inteligência, posto que todos os agentes da lei da vizinhança se opunham aos negócios de minha mãe. O assunto não tinha injunções políticas, já que os agentes não haviam sido eleitos pela oposição: simplesmente faziam-no por fazer.

Naturalmente, o trabalho de meu pai era menos impopular, embora os proprietários dos cães desaparecidos o olhassem às vezes com desconfiança, o que, por extensão, se refletia em mim. Como sócios, à escondida, tinha meu pai os farmacêuticos da cidade, que quase nunca aviavam uma receita sem que nela constasse ao que eles designavam “Ol. can.”, o remédio mais valioso que já se houvera descoberto. Mas a maioria das pessoas não está disposta a fazer sacrifícios pessoais pelos afligidos, e era evidente que muitos dos cachorros mais gordos da cidade eram proibidos de brincar comigo. Isto feriu a minha sensibilidade juvenil e certa feita dirigiram-se a mim para fazer-me de pirata.

Lembrando-me daqueles dias, não posso, às vezes, evitar o arrependimento, pois, levando indiretamente os meus pais à morte, fui o autor dos infortúnios que profundamente afetaram o meu futuro.

Certa noite, quando vinha do gabinete de minha mãe com um exposto, vi passar, à frente da fábrica de azeite de meu pai, um guarda que parecia observar atentamente os meus movimentos. Embora bastante jovem, eu já aprendera que os guardas só acorriam aos fatos mais repreensíveis, de molde que dele me esquivei, enfiado-me na fábrica de azeite por uma porta lateral, que calhou de estar aberta. Travei a porta de uma vez e fiquei só com o meu morto. O meu pai já se recolhera. A única luz daquele lugar provinha do forno, que ardia intensamente sob um dos caldeirões, espalhando uma profunda luz e lançando reflexos rubros nas paredes. No caldeirão, o óleo estava em indolente ebulição, e, por conta de seu movimento, às vezes exibia pedaços de cachorro na superfície. Fiquei a esperar que o guarda se retirasse.

Mantive no meu colo o corpo nu da criancinha e lhe acariciei ternamente o cabelo curto e sedoso. Ah, como era bela! Já naquela tenra idade eu gostava muitíssimo das criancinhas e, ao contemplar aquele anjinho, quase desejei que a pequena ferida vermelha de seu peito, obra de minha querida mãe, não fosse mortal.

O que eu pretendia era jogar a criança ao rio, que a natureza sabiamente nos legara para tal fim, mas, naquela noite, com medo do guarda, não me atrevi a sair da fábrica de azeite. “Afinal – disse com os meus botões- , não acho que teria importância se eu vier a entorná-la no caldeirão. O meu pai nunca irá distinguir os seus ossos dos ossos de um cachorro. E as poucas mortes que poderão advir da administração de outro tipo de azeite no lugar do incomparável 'Ol. can.' não serão percebidas em uma população que cresce tão rapidamente".

Em suma, dei o meu primeiro passo para o crime e entornei a criança no caldeirão com indescritível tristeza.

No dia seguinte, para minha surpresa, meu pai, a esfregar as mãos de satisfação, informou a mim e à minha mãe que obtivera o óleo de qualidade nunca vista, e que este era o parecer dos médicos aos quais levara amostras. Argüiu que não tinha idéia de como lograra tal resultado, pois tratara os cães como sempre o fizera, em todos os aspectos, e eram eles da raça habitual. Considerei que era o meu dever lhes ofertar uma explicação e, notem bem, teria certamente contido o ímpeto de minha língua se pudesse prever as conseqüências.

Os meus pais, lamentando olvidar as vantagens de combinar os seus afazeres, adotaram medidas para reparar o equívoco. Minha mãe mudou o seu gabinete para uma ala do edifício da fábrica e as minhas tarefas com relação ao ofício cessaram. Já não mais precisavam de mim para que me desfizesse dos pequenos supérfluos e não remanescia a necessidade de atrair os cães à condenação, pois o meu pai renunciou completamente a eles, embora ainda ocupassem o honroso nome no azeite.

Assim, subitamente ocioso, poder-se-ia esperar que eu me tornasse uma pessoa viciosa e dissoluta, mas não foi isso o que aconteceu. A influência benéfica de minha mãe seguiu protegendo-me das tentações que assediam a juventude, e, além disso, meu pai era diácono de uma igreja. Mas, por culpa minha, estas estimáveis pessoas iam ter um fim tão funesto!

Ao experimentar um proveito duplo com os seus negócios, minha mãe se entregou ao mister com uma assiduidade nunca dantes vista. Não apenas se desfazia dos indesejados que lhe eram entregues, como acorria às ruas e becos à procura de criancinhas maiores e mesmo adultos que lograva atrair à fábrica. Também meu pai, amante daquele óleo de melhor qualidade, fornia os seu caldeirões com zelo e diligência. Em síntese: a conversão de meus vizinhos em óleo de cão tornou-se a única paixão de suas vidas. Uma avidez absorvente e portentosa invadiu suas almas e ocupou o lugar da esperança que tinham de alcançar o paraíso, que, por outra parte, também os inspirava.

E se atiraram tão vivamente à empresa que os cidadãos reuniram uma assembléia pública, na qual adotaram resoluções que os censuravam severamente. O presidente deu a entender que os ataques sucessivos contra a população eram recebidos com hostilidade. Meus pobres pais abandonaram a assembléia com o coração partido, desesperados e com as mentes perturbadas. Considerei prudente, de toda forma, não entrar com eles na fábrica de óleo naquela noite e fui dormir lá fora, num estábulo.

À meia-noite, um misterioso impulso ordenou que eu me levantasse e espreitasse por uma fresta do quarto do forno, onde eu sabia que meu pai dormia. O lume ardia vivamente, como se esperasse por uma colheita abundante no dia seguinte. Um dos enormes caldeirões fervia devagar, dotado de um misterioso aspecto de contenção, como se aguardasse o momento de envidar toda as suas energias.

Mas meu pai não estava na cama. Levantara-se e estava de roupas de dormir. Fazia um nó corrediço numa corda vigorosa. Pelos olhares que dirigia à porta do quarto de minha mãe, deduzi perfeitamente o propósito que lhe ia na mente. Imobilizado e mudo pelo terror, nada pude fazer para contê-lo. Subitamente, a porta do quarto de minha mãe se abriu sem fazer ruído e eles se defrontaram, ambos surpreendidos com a presença do outro. Ela também estava de camisola, e levava, na mão direita, a sua ferramenta de trabalho: uma longa adaga de folha estreita.

Minha mãe foi, igualmente, incapaz de abdicar à única escolha que a minha ausência e a atitude hostil dos cidadãos a deixaram. Por instantes, eles contemplaram mutuamente os olhos acesos e, então, lançaram-se com indescritível fúria um contra o outro. Como demônios, lutaram pelo cômodo todo. Meu pai maldizia. Minha mãe gritava. Ela tentava cravar-lhe a adaga. Ele forçava por estrangulá-la com as grandes mãos nuas. Não sei por quanto tempo tive a desgraça de observar este desagradável momento de infelicidade doméstica, mas, enfim, depois de um esforço mais vigoroso que o ordinário, os adversários subitamente se separaram.

O peito de meu pai e a arma de minha mãe exibiam sinais de contato. Por instantes, olharam-se da forma mais hostil. Então meu pobre e ferido pai, sentido sobre si a mão da morte, saltou à frente e, fazendo pouco da resistência que a minha mãe oferecia, tomou-a nos braços, conduzindo-a ao caldeirão fervente. E, reunindo as suas últimas forças, fê-la nele mergulhar. Em um momento, ambos tinham desaparecido e adicionavam seu óleo àquele do comitê dos cidadãos que os haviam convocado, no dia anterior, à reunião pública.

Convencido que estes funestos acontecimento obstruíam todos os caminhos para uma honrável carreira naquela cidade, abandonei a famosa vila de Otumwee, onde escrevi estas memórias com o coração repleto de remorsos por um ato tão imprudente e que envolve um deveras catastrófico desastre comercial.

Ambrose Bierce (Ohio, EUA, 24/6/1842 - 1914?) trabalhou para revistas humorísticas como a «Figaro» e a «Fun», na Inglaterra, a partir de 1872. Regressou aos Estados Unidos em 1875, colaborando com vários jornais, tornando-se um dos jornalistas e escritores mais conhecidos do seu tempo, não deixando ninguém indiferente ao seu sentido acutilantemente crítico e satírico da humanidade. Com humor insolente, atacou todos os quadrantes da sociedade: as religiões, a política, a economia, o sentimentalismo. Em 1913, aos setenta e um anos, Bierce partiu ao encontro da Revolução Mexicana, sem deixar rastro. A sua morte permanece um mistério, mas acredita-se que possa ter acontecido durante a Batalha de Ojinaga, em Janeiro de 1914.

Eça de Queiroz


Artesão exímio, iniciador do realismo na literatura de língua portuguesa, capaz de domínio inigualável da palavra escrita, Eça de Queiroz (ou Queirós) dissecou a burguesia do Portugal de seu tempo em romances de fascínio permanente.

José Maria de Eça de Queiroz nasceu em Póvoa de Varzim, em 25 de novembro de 1845. Filho ilegítimo de um magistrado, passou a infância longe dos pais, no Aveiro, e formou-se em direito pela Universidade de Coimbra (1866).

Nessa época tomou parte na Questão Coimbra, ao lado de Antero de Quental e Teófilo Braga, em defesa do realismo na literatura. Estreou então como escritor, na Gazeta de Portugal, com o folhetim de Notas marginais, mais tarde parte das Prosas bárbaras (1905). Em 1867 lançou o Distrito de Évora, jornal que dirigiu.

Admitido por concurso na carreira diplomática em 1870, foi cônsul em Cuba, no Reino Unido e finalmente em Paris, onde permaneceu até a morte. Com Ramalho Ortigão, lançou em 1871 As Farpas, publicação mensal para a qual escreveu artigos de crítica político-social demolidora, mais tarde reunidos em Uma campanha alegre (1890): em estilo irônico e contundente, o livro é uma mostra de jornalismo participante e pioneiramente moderno.

Com Ramalho também escrevera uma novela policial, O mistério da estrada de Sintra (1870). Seu conto Singularidades de uma rapariga loira (1874), além de uma obra-prima, é o primeiro de cunho realista em português. Essa atitude seria elevada a alta eficiência expressiva nos romances que publicou em seguida.

Eça se casou (1886) com Emília de Castro Pamplona, irmã de um amigo e companheiro de viagens, o conde de Resende. De 1889 em diante o consulado de Paris, que muito ambicionara, não lhe alterou a produtividade; fundou a Revista de Portugal (1889-1892) e continuou a colaborar em jornais portugueses e brasileiros, enviando cartas, ecos, "bilhetes" lidos e relidos com avidez.

Romancista

Eça de Queirós é um dos maiores ficcionistas da literatura de língua portuguesa. Dotado de senso estético invulgar, desde o início impressiona pela riqueza e flexibilidade estilística. Escreve o português mais vivo de seu tempo, sem pruridos puristas e impregnado de verdade concreta, capaz de recriar e criticar todos os seres e coisas com originalidade e volúpia.

Humorista irreverente, no romance O crime do padre Amaro (1875) essa característica se alia a um realismo severo, feroz e espirituoso ao mesmo tempo, que satiriza a corrupção do clero e reconstitui seus costumes com extrema vivacidade. Mais densa é a escrita de O primo Basílio (1878), primorosamente construído, com as personagens como que aprisionadas, em seus impulsos e alternativas, pela circunstância social que as limita e condiciona.

Mais voltado para a dinâmica das relações do que para a psicologia dita profunda, Eça tempera o psicólogo social com o amante da natureza, que a registra com frescor e embevecimento. Na sociedade inquieta, entre fútil e amarga às portas da revolução republicana, a usura e a beatice pequeno-burguesa encontram um caricaturista minucioso e às vezes cruel em A relíquia (1887), em que a aventura do humor não se esquiva às máscaras do grotesco.

"Porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira." Antes da obra-prima que é o romance Os Maias (1888), e de suas implicações, o autor talvez não fizesse essa anotação. Obra maior da maturidade, esse vasto panorama de uma família burguesa, de seu prazer e sua dor, sua sensualidade e seu cerco de convenções, realiza até o mais alto grau o gênio de Eça de Queirós. A captação de cada passo, cada ranhura ou eco da paixão incestuosa leva o escritor a beirar a noção do inconsciente e a dar um sentido existencial às marcas do desengano.

Outro livro admirável é A ilustre casa de Ramires (1900), em que a observação e a fina ironia focalizam a pequena nobreza decadente, entre seus últimos bens e os males que a corroem. Sobressaem neste caso, junto às outras saborosas peculiaridades do mestre, a ampla visão sociológica, em que avulta o amor pela terra portuguesa, e o empenho metaliterário que faz do protagonista autor de um árduo romance.

Essa agudeza não se acha menos presente em A cidade e as serras (1901), deliciosa sátira dos progressos ainda canhestros dos tempos modernos e reencontro do romancista com a paisagem de sua meninice. Vê-se também aí, no jogo dos contrastes, o apego nostálgico à essencialidade honesta da vida ainda natural e limpa do interior.

Perfeccionista obsessivo, Eça estigmatiza a escravidão ao ouro ou a qualquer acúmulo improdutivo, mesmo que de requintes, de livros. Uma sábia alegoria do problema suscitou na novela O mandarim (1880) algumas de suas páginas mais fecundas. O tema, no fundo, se depura ainda no esplendor austero das vidas de três santos, reunidas em últimas páginas (1912).

Eça foi escritor de uma auto-exigência quase impiedosa. Além de deixar inacabados e inéditos vários trabalhos que não o satisfizeram, desprezou a primeira versão de Os Maias, publicada em 1980 com o título de A tragédia da rua das Flores.

Outras faces

De realismo menos estrito e quase mágico nos Contos (1902), Eça deixou sua crítica dispersa em periódicos e cartas que se publicaram aos poucos -- a autobiográfica Correspondência de Fradique Mendes (1900), as Cartas de Inglaterra (1903), os Ecos de Paris (1905) e as Cartas familiares e bilhetes de Paris (1907).

Em Notas contemporâneas (1909) o crítico se envolve com os principais temas e debates de seu tempo e se faz presente também em O Egito (1926), sobre a viagem ao Oriente. Na ficção que ficara inédita, há ainda seduções, e fortes, em A capital, O conde de Abranhos, Alves & Cia., os três impressos em 1925. Por fim, a encantadora tradução de As minas do rei Salomão (1891), de Riger Haggard, é um divertimento inesquecível.

Criador de tipos que ficaram proverbiais, como o conselheiro Acácio ou Jacinto de Tormes, nem sempre os fez, como estes, algo esquemáticos e caricaturais. Maria Eduarda, entre outras criaturas, é de verdade profunda e de presença inefável.

É questão de sentir e entender ao mesmo tempo. Como lembrou Moniz Barreto, "a paixão e a fantasia ocupam um lugar importante em sua obra, ao lado da observação e da análise". Eça de Queirós morreu em Paris em 16 de agosto de 1900.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.