sábado, 13 de agosto de 2011

Gérard de Nerval

Contemporâneo de Victor Hugo, Musset e Lamartine, Nerval nada tem em comum com esses românticos franceses: como Edgar Allan Poe, cresceu de olhos postos na Alemanha de Hoffmann e foi um precursor do simbolismo, de Baudelaire e do surrealismo.

Gérard Labrunie, que adotou o pseudônimo Gérard de Nerval, nasceu em Paris em 22 de maio de 1808. Filho de um médico militar, perdeu a mãe aos dois anos e passou a infância junto ao avô, na região do Valois. Em 1822 foi estudar em Paris, onde freqüentou os círculos artísticos e dissipou a fortuna na boêmia. Aos vinte anos publicou uma tradução do Faust, de Goethe, que fascinou o autor.

Em 1934 Nerval viajou à Itália e, de volta, apaixonou-se pela atriz Jenny Colon, que se transformaria em imagem mítica das futuras obras do poeta. Nerval também viajou pela Alemanha e pelo Oriente Médio.

Na criação de Nerval, a sonoridade da linguagem acentua a magia de seu significado, em que se misturam influências cristãs e gregas, cabalísticas e orientais, sobretudo nos sonetos de Les Chimères (As quimeras), coletânea acrescida aos contos de Les Filles du feu (1854; As filhas do fogo), que incluem Sylvie, evocação transcendente do mundo de beleza e inocência da infância no Valois.

Ainda mais significativo, para muitos, é o romance Aurélia ou Le Rêve et la vie (1855; Aurélia ou O sonho e a vida), em que imagens da amada e da Virgem Maria se mesclam oniricamente. O melhor de sua obra foi realizado nos últimos anos, em que sofreu graves crises mentais e foi várias vezes internado, acabando por enforcar-se em Paris, em 26 de janeiro de 1855.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

A sexta-feira 13 e suas supertições


A Sexta-feira que cai num dia 13 de qualquer mês é considerada popularmente como um dia de azar.

O número 13 é considerado de má sorte. Na numerologia o número 12 é considerado de algo completo, como por exemplo: 12 meses no ano, 12 tribos de Israel, 12 apóstolos de Jesus ou 12 signos do zodíaco.

Já o 13 é considerado um número irregular, sinal de infortúnio. A sexta-feira foi o dia em que Jesus foi crucificado e também é considerado um dia de azar. Somando o dia da semana de azar (sexta) com o número de azar (13) tem-se o mais azarado dos dias.

Triscaidecafobia é um medo irracional e incomum do número 13. O medo específico da sexta-feira 13 (fobia) é chamado de parascavedecatriafobia ou frigatriscaidecafobia.

Esta superstição pode ter tido origem no dia 13 de Outubro de 1307, sexta-feira, quando a Ordem dos Templários foi declarada ilegal pelo rei Filipe IV de França; os seus membros foram presos simultaneamente em todo o país e alguns torturados e, mais tarde, executados por heresia.

Outra possibilidade para esta crença está no fato de que Jesus Cristo provavelmente foi morto numa sexta-feira 13, uma vez que a Páscoa judaica é celebrada no dia 14 do mês de Nissan, no calendário hebraico.

Recorde-se ainda que na Santa Ceia sentaram-se à mesa treze pessoas, sendo que duas delas, Jesus e Judas Iscariotes, morreram em seguida, por mortes trágicas, Jesus por crucificação e Judas provavelmente por suicídio.

Além da justificativa cristã, antes disso existem duas outras versões que provêm da mitologia nórdica que explicam a superstição. Na primeira delas, conta-se que houve um banquete e 12 deuses foram convidados. Loki, espírito do mal e da discórdia, apareceu sem ser chamado e armou uma briga que terminou com a morte de Balder, o favorito dos deuses. Daí veio a crendice de que convidar 13 pessoas para um jantar era desgraça. Há também quem acredite que convidar 13 pessoas para um jantar é uma desgraça, simplesmente porque os conjuntos de mesa são constituídos, regra geral, por 12 copos, 12 talheres e 12 pratos.

Segundo outra versão, a deusa do amor e da beleza era Friga (que deu origem a frigadag, sexta-feira). Quando as tribos nórdicas e alemãs se converteram ao cristianismo, Friga foi transformada em bruxa. Como vingança, ela passou a se reunir todas as sextas com outras 11 bruxas e o demônio, os 13 ficavam rogando pragas aos humanos. Da Escandinava a superstição espalhou-se pela Europa.

A superstição é derivada apenas de nosso desconhecimento, mas quando nos tornamos mais conscientes de nossos atos, nossa forma-pensamento se fortalece.

Superstições são as culpadas que encontramos para nossos erros e desconhecimentos:

-Quando um gato preto atravessa nosso caminho logo pensamos que teremos um dia inteiro de azar, mas podem ter certeza de que ele estará pensando que terá “azar” se você o chutar;

-Quando quebramos um espelho acidentalmente morremos de pavor achando que teremos sete anos de azar, mas nós você não tivermos cuidado com nossas coisas poderemos ter um prejuízo sete vezes maior que aquele;

-Ao passarmos por debaixo de uma escada também pensamos que nosso dia será desastroso, cheio de azar, mas podem ficar certos de que teremos um grande “azar” se tropeçarmos na escada e em cima dela estiver um pintor com várias latas de tinta.

Fonte: Site de Curiosidades.

O papel e sua história

A palavra papel é originária do latim "papyrus", nome dado a um vegetal da família "Cepareas" (Cyperua papyrus), encontrado às margens do rio Nilo, no Egito,  e que representou para os egípcios o suporte da escrita hieroglífica, veículo de transmissão do conhecimento e da sensibilidade do homem da época.

O talo dessa planta era cortado na parte interior onde se encontravam as fibras muito resistentes e flexíveis e que unidas em lâminas, serviam de superfície própria para escrever.

O papiro atravessou séculos, levando a cultura do Egito a outros povos, copiada até pelos gregos e romanos, que escreviam em rolos; por isso permitiu não só a preservação da memória cultural, mas serviu também de testemunho da história dos materiais usados pelo homem.

No século II, o papiro fazia tanto sucesso entre os gregos e os romanos, que os mandatários do Egito decidiram proibir a sua exportação, temendo a escassez do produto. Isso disparou a corrida atrás de outros materiais.

Na cidade de Pérgamo, na Antiga Grécia (hoje, Turquia), foi usado o pergaminho, obtido da parte interna da pele do carneiro. Grosso e resistente, ele era ideal para os pontiagudos instrumentos de escrita dos ocidentais que cavavam sulcos na superfície do suporte, os quais eram, depois, pacientemente preenchidos com tinta.

O pergaminho, entretanto, não era liso e macio o suficiente para resolver o problema dos chineses, que praticavam a caligrafia com o delicado pincel de pêlo, inventado por eles ainda no ano 250 a.C. - só lhes restava, assim, a solução muito menos econômica de escrever em tecidos como a seda. E o tecido, naqueles tempos antigos, podia sair tão caro como uma pedra preciosa.

Provavelmente, o papel já existia na China desde o século II a.C., como indicam os restos num túmulo, na província de Shensi. Mas o fato é que somente no ano 105, o oficial da corte T'sai Lun anunciou ao imperador a sua invenção. Tratava-se, afinal, de um material muito mais barato do que a seda, preparado sobre uma tela de pano esticada por uma armação de bambu. Nessa superfície, vertia-se uma mistura aquosa de fibras maceradas de redes de pescar e cascas de árvores.

No ano 750, dois artesãos da China foram aprisionados pelos árabes, na antiga cidade de Samarcanda, aos pés das montanhas do Turquistão. A liberdade só lhes seria devolvida com uma condição - se eles ensinassem a fabricar o papel, que assim iniciou a sua viagem pelo mundo. No século X, foram construídos moinhos papeleiros em Córdoba, Espanha.

Os italianos da cidade de Fabriano começaram a fabricar papel, em 1268, à base de fibras de algodão e de linho, além de cola - substância que, ao envolver as fibras, tornava-as mais resistentes às penas metálicas com que escreviam os europeus. Quanto ao preço, no entanto, papel e pergaminho empatavam, pois era muito difícil conseguir roupas velhas para extrair a celulose.

Quando, na Renascimento, o advento da imprensa fez o consumo de papel aumentar terrivelmente, os ingleses chegaram a determinar que as pessoas só poderiam ser enterradas com trajes de lã, a fim de poupar os trapos de algodão, deixados como herança para os papeleiros. Até hoje o papel-moeda, por exemplo, não dispensa esse nobre ingrediente, que por ter fibras longuíssimas faz um produto difícil de rasgar.

Apenas em 1719, o entomologista René de Réaumur (1683-1757) sugeriu trocá-lo pela madeira. Ele observou vespas a construir ninhos com uma pasta feita a partir da mastigação de minúsculos pedaços de troncos.

Fontes: http://catarinameireles.no.sapo.pt; http://www.sitedecuriosidades.com.

Origem do termo 'Restaurante"

O termo restaurante (do francês restaurant) surgiu no século XVI, com o significado de "comida restauradora", e se referia especificamente a uma sopa. O uso moderno da palavra surgiu por volta de 1765 quando um parisiense conhecido por Boulanger (sobrenome comum, mas que significa padeiro em francês) abriu seu estabelecimento.

O primeiro restaurante como o conhecemos (com clientes escolhendo porções individuais em um cardápio, aguardando em suas mesas, com horários fixos ou não) foi o "Grande Taverne de Londres", fundado em 1782 por Antoine Beauvilliers, na rua de Richelieu, em Paris, que permaneceu 20 anos sem rival.

Porém, segundo o Guiness Book, o restaurante mais antigo do mundo e ainda em funcionamento fica na Espanha, na calle de Cuchileros 17, Plaza Mayor (Madrid). Trata-se do Sobrino de Botín que fuciona ininterruptamente desde 1725, embora nos primeiros anos não fosse exatamente um restaurante, mas uma estalagem que recebia viajantes, mercadores, tropeiros. Pertencia ao cozinheiro francês Jean Botín e não ficava nesse endereço atual, mas na Plaza de Herradores, longe dali. Candido Remis, sobrinho do primeiro dono, batizou a casa com o nome atual, Sobrino de Botín.[1]

Apesar das pousadas e tavernas serem conhecidas desde a antigüidade, estes estabelecimentos eram voltados a viajantes e, em geral, o povo das suas cidades raramente se alimentavam lá. O restaurante se firmou na França após a Revolução Francesa destituir a aristocracia, deixando um contingente de serviçais hábeis no trato com os alimentos, ao mesmo tempo em que muitos provincianos chegavam à cidade sem pessoas para cozinhar para elas, nem cartas de apresentação às famílias locais. O encontro desses dois públicos deu origem ao hábito de se fazer refeições fora de casa. Neste período, o chef Marie-Antoine Carême, segundo muitos o fundador da moderna culinária francesa, prosperou, se tornando conhecido como o "cozinheiro dos reis e o rei dos cozinheiros".

Os restaurantes proliferaram rapidamente nos Estados Unidos, com a abertura do primeiro Jullien's Restaurator em Boston, em 1794, e espalharam-se posteriormente. Contudo, muitos continuaram com a abordagem habitual do "serviço à francesa", providenciando uma refeição partilhada na mesa onde os clientes serviam-se eles próprios, o que os encorajava a comer com rapidez. O estilo moderno formal de jantar, onde os clientes são servidos com a comida já preparada num prato, é conhecido como Service à la russe, pois consta ter sido introduzido em França pelo princípe russo Kurakin cerca de 1810, de onde se espalhou para Inglaterra e outros países.

Fonte: http://www.pizzarellasaobento.com.br

Fome de beijos

Caiu das nuvens:

— Você tem filhos?

— Tenho.

Epaminondas pôs as mãos na cabeça:

— Mas não é possível! Não pode ser! — Engole em seco e pergunta: — Mas filho de que idade?

Resposta:

— Nove anos!

E ele:

— Sabe que eu estou com a minha cara no chão? Besta?

— Pois é.

O espanto de Epaminondas tinha a sua razão de ser. Conhecia Silene há três dias. Quase não sabia nada a respeito da garota; ou por outra: — sabia apenas que era viúva. Do ponto de vista físico, tinha um jeito adolescente, uma cinturinha frágil e fina, quadris estreitos e, numa palavra, um corpo de menina solteira. Assim que a viu, num ônibus apinhado, ele fez seus cálculos: “Essa menina perdeu o marido de cara, tem pouquíssima experiência amorosa e deve ser gostosíssima”. Conversara três vezes com Silene e, na última, recebe à queima-roupa a notícia que havia um filho de nove anos. De si para si, Epaminondas deduz: — “Garoto de nove anos, não dá para atrapalhar”.

O MEDO

Na tarde seguinte, fez como das vezes anteriores: veio para o saguão do edifício, onde ela trabalhava, esperá-la. Depois, iria levá-la ao ponto de ônibus. Mas quando Silene saiu do elevador, no meio de um mundão de gente, e o viu, assustou-se. Olhava para um lado e outro, como se existisse um espião nas proximidades. Diante de Epaminondas pede: “Não faça mais isso”. Epaminondas não entende: “Por quê?”. E ela, visivelmente nervosa: — “Alguém pode ver e não convém”. Epaminondas pergunta:

— Mas você não é livre? Desimpedida? Ou tem algum compromisso?

Vacila antes de responder:

— Compromisso, propriamente, não tenho. Mas tenho um filho. Imagina se meu filho! Se desconfia!

Em pé, no meio da calçada, Epaminondas abre os braços: “Você liga tanto ao que diz um pirralho? Faça-me o favor!”. Então, caminhando para o poste de ônibus, Silene vem explicando certas coisas de sua vida. Primeiro, faz a ressalva: “Eu tenho uma forte simpatia por você, mas...”. Explica que o filho, um menino taludo e desabusado, a tiranizava mais que o marido. Epaminondas, pasmo, exclamou: “Ora veja!”. Silene temia mais aquele julgamento infantil do que o próprio Juízo Final. Epaminondas enfia as duas mãos nos bolsos:

— Mas isso é um absurdo! Não tem o menor cabimento!

O FILHO

Antes de apanhar o ônibus, ela vira-se para Epaminondas:

— Faz o seguinte: telefona amanhã para mim, depois do almoço. Eu te digo qualquer coisa.

Epaminondas despede-se e vem para o bar encontrar-se com seus amigos, no começo da noite. Impressionado, refere o caso da jovem mãe escravizada por um fedelho. Um dos colegas resume: “Histerismo!”. O outro decide: “Caso de psicanálise!”. Ao que um terceiro retruca: “Caso de tapona!”. Quanto ao próprio Epaminondas, coçava a cabeça, ainda inconformado:

— Que mágica besta!

Conforme o combinado, o rapaz, depois do almoço na tarde seguinte, bate o telefone. Silene parecia desesperada. “Vamos acabar!” Surpreso, Epaminondas ponderou sensatamente: “Acabar o que ainda não começou? Tem dó, meu bem!”. Sentiu, porém, que a garota estava num pânico real e profundo: “Ele desconfia, ouviu?”. Novo espanto irritado de Epaminondas:

— Desconfia de quê, ora bolas? Se não houve nada, se não fizemos nada?!

Angustiada ela explica: — “Meu filho adivinha! Quando ele põe os olhos em mim, lê o meu pensamento, percebe tudo!”.

Epaminondas reage, violentamente:

— Vou te dizer o seguinte: se eu não te conhecesse, como te conheço, ia pensar que tu és uma doente mental! Palavra de honra!

Silene, chorando, propõe: “Se tu quiseres falar comigo pelo telefone, muito que bem. Pessoalmente não”.

AJUSTE

Embora indignado, submeteu-se. Não foi esperá-la mais. Em compensação, seus telefonemas eram quilométricos, durando nunca menos de quarenta minutos. Dia a dia, ele foi se tomando de um rancor obtuso contra o menino. Esbravejava:

— “Sabe que essa autoridade de teu filho sobre ti é até imoral? No duro que é!”.

Ela, que fora casada três meses apenas, confessava:

— Eu não respeitava o meu marido como respeito o meu filho!

Um dia, ele diz ao telefone:

— Queres saber de um negócio? Tu não gostas do teu filho. Tens medo, o que é diferente. — E insistia, encarniçado: — Não é amor, é medo!

No trabalho, com as colegas, Silene admitia que o marido fora apenas o marido e nada mais. E acrescentava: “Epaminondas, não, Epaminondas é amor no duro, amor batata”. Resumia para as companheiras interessadíssimas: “Meu primeiro amor”. Quem não via com bons olhos o romance telefônico era o chefe. Sempre que passava e surpreendia a funcionária no telefone, ele rosnava: “Débil mental!”. Até que, uma tarde, acontece o imprevisto: o menino aparece, no escritório, por conta própria, sem avisar. Dir-se-ia que uma dessas intuições reveladoras o guiava. Coincidiu que, no momento, por infelicidade, Silene estivesse escravizada ao telefone e chorando. Na frente de todo mundo, arranca o aparelho das mãos maternas. Nessa tarde, ela, numa pusilanimidade abjeta, larga o serviço, larga tudo, para acompanhar o menino. Que pavoroso ajuste de contas teria havido, em casa, entre mãe e filho? Que dilaceramento recíproco e definitivo? Nunca se soube.

NECROTÉRIO

O fato é que, no seguinte telefonema de Epaminondas, Silene parecia outra. Despachou-o:

— Não me procure mais, nunca mais. Entre você e meu filho, fico com meu filho.

Sentiu que a perdera. Durante uns vinte e cinco dias, en¬tregou-se de corpo e alma ao desespero. Vivia continuamente na fronteira da loucura e do suicídio. E só não estourou os mio¬los porque passava os dias, de um sol a outro sol, bêbado de todo, bêbado de cair. Um mês depois, ele vê, na rua, Silene com o menino. Pensa com ódio no coração: “É ele!”. Põe-se a segui-los, com uma obstinação de possesso. Súbito, a mãe e o filho estacam em cima do meio-fio. E, quando começam a atravessar a rua, Epaminondas apressa o passo e se coloca ao lado do ga¬roto. Era um cruzamento de tráfego intensíssimo. No meio do caminho, os três vacilam. Vêm dois ou três automóveis em dis¬parada. E, antes que chegassem ao outro lado, um lotação apa¬nha a criança, em cheio, projetando-a longe.

Imediatamente, os outros carros freiam. Silene, no meio da rua, grita como louca, ao passo que Epaminondas desaparece. Levado para o pronto-socorro, numa ambulância, o pequeno expira horas depois. Sofrera fratura de crânio, da espinha, afundamento do maxilar.

Numa dor enxuta e atônita, Silene acompanha os homens que levam o filho ao necrotério. Os círios são colocados e acesos.

Retiram-se os funcionários e ela está só com o pequeno morto, enrolado em gazes ensangüentadas. Súbito, sente que há mais alguém ali, que chegou alguém.

Vira-se com o coração apertado: Epaminondas está na porta, petrificado. Ela aproxima-se do recém-chegado. Face a face com ele, acusa-o: “Empurraste meu filho!”. Epaminondas baixa a cabeça, trancando os lábios.

E ela, ofegante:

— Agora que meu filho está morto, eu posso ser tua!

Aperta o seu rosto entre as mãos e o beija na boca, como uma esfomeada.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

A aparição da Senhora Veal

Este relato é verdadeiro e cercado por muitas circunstâncias que podem induzir qualquer homem sensato a acreditar nele. Foi enviado por um cavalheiro, um juiz da paz em Maidstone, no Kent, e pessoa de muita inteligência, a um amigo seu em Londres, tal como está aqui redigido.

O texto é certificado por uma dama parente do citado juiz da paz e que é pessoa de mente sóbria e de grande compreensão, a qual vive em Canterbury, a umas poucas portas da casa em que mora a senhora Bargrave, nomeada no relato. O juiz da paz acredita que sua parente é de espírito tão atilado que nunca se deixaria enganar por qualquer fraude. Ela própria garantiu-lhe positivamente que a questão toda tal como aqui relatada e redigida constitui a verdade, e a mesma coisa que ela ouviu aproximadamente nas mesmas palavras da boca da mesma senhora Bargrave, a qual, ela sabe, não tinha razão para inventar e divulgar tal história, nem desejo de forjar e contar uma mentira, sendo uma mulher muito honesta e virtuosa, e toda a sua vida um exemplo de piedade.

O proveito que podemos tirar desse documento é ter em mente que há uma vida por vir depois desta e um Deus justo que retribuirá à cada um segundo os atos feitos com este corpo atual; devemos, portanto, refletir no que tem sido a nossa vida; não esquecer de que o tempo de que dispomos é curto e incerto e que, se quisermos escapar à punição reservada aos ímpios e alcançar a recompensa dos que procedem bem, que é a vida eterna, temos de, no tempo que nos resta, voltar a Deus por um rápido arrependimento, deixando de co¬meter o mal e aprendendo a fazer o bem. partindo em busca de Deus, se com felicidade Ele possa ser de nós encontrado, e de levar tais vidas no futuro que Lhe possam ser agradáveis.

Isto que vou contar é tão raro em todas as suas circunstâncias, e fundado em tão boa autoridade, que toda a minha leitura e as minhas conversas nada me forneceram de semelhante. E coisa apta a satisfazer o investigador mais destro e exigente.

A senhora Bargrave é a pessoa a quem a senhora Veal apareceu depois de falecer. Ela é minha amiga íntima, e posso atestar-lhe a probidade, por estes últimos quinze ou dezesseis anos, por meu próprio conhecimento. E posso confirmar a reputação de honestidade de que gozou desde sua mocidade até o momento em que a conheci, o que é necessário; porque, em função do relato que fez da aparição da senhora Veal, ela é objeto de calúnia por parte de algumas pessoas que são amigas do irmão da mencionada senhora Veal, às quais o relato da aparição parece uma ofensa, e fazem o que podem para acabar com a reputação da senhora Bargrave e para ridicularizar a história que conta.

Mas, dadas as circunstâncias do que se passou e a boa disposição da senhora Bargrave, não obstante os maus-tratos inéditos a que foi sujeita por um marido muito cruel, não há em sua fisionomia o menor sinal de desalento. Nem eu a ouvi pronunciar uma expressão de desespero ou de queixa, nem mesmo quando submetida às barbaridades do marido, de que eu fui testemunha, assim como várias outras pessoas cuja reputação não se pode pôr em dúvida.

É preciso que vocês saibam que a senhora Veal era uma moça solteira e nobre de cerca de trinta anos de idade e, por alguns anos, vinha sofrendo de ataques que nela se manifestavam porque ela interrompia o que estava dizendo com alguma extravagância abrupta. Ela era sustentada pelo único irmão que tinha, e tomava conta da casa deste último em Dover. Era uma mulher muito religiosa, e o irmão um homem sóbrio, ao que tudo demonstrava, mas agora ele faz o que pode para reduzir a pedaços esta história.

A senhora Veal era intimamente ligada à senhora Bargrave desde a infância. Naquela época, as condições em que vivia a senhora Veal eram ruins. O pai não tomava cuidado das crianças como devia, o que as expunha a privações, e também a senhora Bargrave vivia naqueles tempos com um pai cruel, embora não lhe faltassem nem comida nem roupa, coisas que fal¬tavam à senhora Veal. Estava, portanto, dentro das possibilidades da senhora Bargrave ajudar a senhora Veal de várias maneiras, o que esta última muito apreciava. Muitas vezes, ela dizia:

- Senhora Bargrave, a senhora não é apenas a melhor, mas é a única amiga que tenho no mundo e nenhuma circunstância na vida dissolverá jamais tal amizade.

Elas lamentavam juntas a fortuna adversa e liam o livro de Drelincourt sobre a morte e outros livros bons. E assim, como duas amigas cristãs, elas se con¬fortavam reciprocamente.

Algum tempo depois, os amigos do senhor Veal arranjaram-lhe um lugar na Alfândega de Dover, o que fez com que a senhora Veal, a pouco e pouco, se desprendesse da intimidade com a senhora Bargrave, embora nunca houvesse entre as duas, alguma coisa como uma briga. Mas, gradualmente, surgiu entre elas uma indiferença, até que, por fim, a senhora Bargrave passara dois anos e meio sem ver a amiga, embora por cerca de um ano a senhora Bargrave tivesse estado ausente de Dover e houvesse passado os últimos seis meses em Canterbury morando em casa própria.

Em tal casa, em 8 de setembro último, 1705, ela estava sentada sozinha na manhã, meditando sobre sua vida desafortunada e buscando argumentos que a inclinassem à resignação devida à Providência, embora sua situação parecesse difícil. "E", pensou ela, "eu fui ajudada até agora e não duvido de que ainda o serei e estou certa de que minhas aflições terminarão quando for mais apropriado" e, depois de tais pensamentos, tomou de sua obra de costura, coisa que ela mal acabara de fazer quando ouviu bater à porta. Levantou-se para ver quem era e deu com a senhora Veal, que estava de roupa de montaria. Naquele exato momento, o relógio bateu doze badaladas.

-Madame - disse a senhora Bargrave -, estou surpreendida em vê-la. Por tanto tempo estivemos separadas!

Mas disse-lhe que ficava feliz em voltar a vê-la, e fez menção de dela se aproximar, com o que concordou a senhora Veal, até que os lábios das duas quase se tocaram.

E então a senhora Veal passou a mão pelos olhos e disse:

-Não me sinto muito bem.

Disse à senhora Bargrave que partiria sozinha numa viagem e tivera um grande desejo de visitá-la antes de seguir.

-Mas - ponderou a senhora Bargrave - como é que a senhora parte em viagem sozinha? Isso espanta-me, porque sei que seu irmão lhe é tão aficionado.

-Ora - disse a senhora Veal -, enganei meu irmão e vim sozinha, tal era o meu desejo de ver a senhora, antes de partir em viagem.

Assim a senhora Bargrave seguiu com ela para outro aposento e a senhora Veal sentou-se numa cadeira de braços, exatamente onde a senhora Bargrave estivera sentada quando ouvira a senhora Veal bater à porta.

Então disse a senhora Veal:

-Minha querida amiga, eu vim renovar nossa amizade antiga, e peço seu perdão por me ter apartado. E, se puder perdoar-me, a senhora é uma das melhores mulheres.

-Ora - disse a senhora Bargrave -, não mencio¬ne uma tal coisa. Isso nunca me preocupou. Posso facilmente perdoá-la.

-Que pensou a senhora de mim? - perguntou a senhora Veal.

-Pensei - respondeu a senhora Bargrave - que a senhora era como o resto do mundo e que a prosperidade a tinha feito esquecer a nossa ligação.

Então a senhora Veal lembrou à senhora Bargrave os muitos serviços amistosos que esta lhe tinha prestado no passado e muito das conversas que, uma com a outra, tinham mantido no tempo de adversidade; lembrou-lhe os livros que liam e, em particular, o conforto que recebiam da meditação do ensaio de Drelincourt sobre a morte, que ela classificou como o melhor dos livros sobre o assunto. Também mencionou os livros que o doutor Sherlock e dois autores holandeses traduzidos escreveram sobre a morte e vários outros. Mas disse que Drelincourt possuía a visão mais clara da morte e de nossa futura condição, entre todos os que tinham tratado do assunto. Então pergun¬tou à senhora Bargrave se ela dispunha de um exemplar da obra de Drelincourt.

-Sim - disse a senhora Bargrave.

-Traga-o - pediu a senhora Veal.

E então a senhora Bargrave subiu ao andar de cima e trouxe o livro.

-Querida senhora Bargrave - afirmou a senhora Veal se os olhos da fé estivessem abertos como os olhos do corpo, veríamos numerosos anjos a nosso redor, para guardar-nos. As idéias que temos do céu não são nada perto do que é, como diz Drelincourt. Portanto, suporte com paciência seus sofrimentos e acredite que o Todo-Poderoso a tem em particular consideração e que as tribulações que a afligem são marcas do favor de Deus. E quando essas tribulações tiverem alcançado o objetivo pelo qual foram manda¬das elas lhe serão retiradas. E acredite-me, minha querida amiga, acredite no que lhe digo: um minuto de futura felicidade a recompensará infinitamente de todos os seus sofrimentos; pois nunca poderei acreditar - (nesse ponto, a senhora Veal bateu com a mão no joelho com grande veemência, a mesma veemência que marcou tudo o que dizia) - que Deus suportará que a senhora passe todos os seus dias em aflição; mas esteja certa de que seus males a deixarão, ou a senhora os deixará dentro em breve.

Falou de uma maneira tão celestial e patética que a senhora Bargrave chorou várias vezes, tanto aquilo tudo a impressionou.
Então a senhora Veal mencionou o livro do doutor Hoerneck sobre o ascetismo, no fim do qual ele faz um relato da vida dos cristãos primitivos. Ela recomendou tais modelos para nossa imitação, e disse que as conversas deles não eram como as de hoje em dia.

-Pois agora — disse ela — só há conversas vãs e superficiais, muito diferentes das que mantinham. Eles falavam para edificação recíproca e para que aumen¬tasse mutuamente a fé; assim não eram como nós somos, e nós não somos como eram. Mas – acrescentou - poderíamos fazer como faziam. Havia entre eles uma amizade cordial, mas onde acharemos tal maravilha hoje em dia?

-É de fato difícil - respondeu a senhora Bargrave - encontrar um verdadeiro amigo nos dias que correm.

-O senhor Norris - disse a senhora Veal - escreveu um bonito livro de versos intitulado amizade na perfeição, livro que eu admiro enormemente. A senhora conhece o livro?

-Não - disse a senhora Bargrave -, mas publiquei os meus próprios versos.

-A senhora publicou? - perguntou a senhora Veal. - Então, vá buscá-los.

A senhora Bargrave buscou os versos no an¬dar de cima e os ofereceu à senhora Veal, para que os lesse, mas esta os recusou e disse que olhar para baixo lhe daria dor de cabeça; pediu então à senho¬ra Bargrave que lesse os versos, coisa que esta última fez.

Quando admiravam "Amizade", a senhora Veal disse:

-Querida senhora Bargrave, eu a amarei para sempre.

Nos versos usam-se por duas vezes as palavras "pertencentes aos Campos Elíseos".

Disse a senhora Veal: - Esses poetas têm tais nomes para o céu!

Passava muitas vezes a mão pelos olhos e dizia:

-Não acha a senhora que estou muito afetada por meus ataques?

-Não - respondeu a senhora Bargrave -, acho que está com tão boa aparência quanto jamais a vi.

Depois de toda essa conversação, em que a aparição pronunciou palavras de uma qualidade muito superior às que a senhora Bargrave disse que poderia usar, e que consistiu em muito mais do que aquilo de que se podia lembrar (não se deve pensar que seria possível reter inteiramente uma conversa que durou uma hora e três quartos, embora a senhora Bargrave declare que se lembra da maior parte do que trataram), ela pediu à senhora Bargrave que escrevesse, em seu nome, uma carta a seu irmão, dizendo-lhe que desse anéis a tais e tais pessoas, e que havia uma bolsa com ouro no escritório dela, e que ela lhe pedia que desse duas peças de ouro ao primo Watson.

Como falava muito e com pressa, a senhora Bargrave entendeu que lhe vinha um dos ataques a que era sujeita, e colocou-se assim numa cadeira bem diante dos joelhos dela, para impedir que caísse ao chão, se sobreviesse o ataque. Pois a cadeira de braços, pensou a senhora Bargrave, impediria que a senhora Veal caísse para qualquer dos lados. E, tentando divertir a senhora Veal, tomou de uma das mangas do vestido desta e elogiou o tecido. A senhora Veal disse-lhe que era de seda lavada, e feita recentemente.

Não obstante isso, a senhora Veal insistiu em seu pedido, e disse à senhora Bargrave que não devia recusar-lhe o favor; e queria que contasse ao irmão toda a conversa, quando tivesse uma oportunidade para tanto.

-Querida senhora Veal - respondeu a senhora Bargrave isso parece tão fora de propósito que não posso dizer como cumprir o seu desejo. E que história mortificante será a nossa conversa para um jovem!

-Bem! - disse a senhora Veal - não quero que recuse.

-Parece-me muito melhor - ponderou a senhora Bargrave - que a senhora mesma o faça.

-Não - respondeu a senhora Veal embora isso lhe pareça agora fora de propósito, a senhora compreenderá a razão por que o peço mais tarde.

A senhora Bargrave, então, para satisfazer a insistência com que lhe era feito o pedido, dispunha-se a buscar caneta e tinta, mas a senhora Veal disse-lhe:

-Não faça nada agora. Faça-o quando eu me for. Mas faça-o com certeza.

Isso foi uma das últimas coisas que lhe requereu ao despedir-se. E a senhora Bargrave prometeu o que lhe era solicitado.
Então, a senhora Veal pediu notícias da filha da senhora Bargrave. Esta respondeu que a filha não estava em casa.

-Mas se a senhora quiser vê-la - acrescentou a senhora Bargrave - eu a mandarei chamar.

-Faça isso - disse a senhora Veal.

Ao que a senhora Bargrave deixou a visitante e foi ter com um vizinho para que este chamasse a jovem senhorita Bargrave.
 Quando a senhora Bargrave regressava, a senhora Veal estava do lado de fora da porta, na rua, diante do mercado de animais do sábado (que é dia de tal mercado) e parecia prestes a partir logo que a senhora Bargrave chegou-lhe perto.

Esta perguntou-lhe por que estava com tanta pressa. Respondeu a senhora Veal que devia partir, embora talvez não seguisse viagem antes de segunda-feira; e disse à senhora Bargrave que estimaria voltar a vê-la na casa do primo Watson antes de seguir viagem para onde ia. Então a senhora Veal disse que se despediria, e andou para longe da senhora Bargrave à vista desta última, até que uma volta da rua não a dei¬xou mais ver, o que se deu exatamente à uma hora e quarenta e cinco minutos da tarde.

A senhora Veal morreu no dia 7 de setembro ao meio-dia, de seus ataques, e, antes de morrer, não dispôs de mais do que quatro horas de consciência. Nesse período, ela recebeu os sacramentos. No dia que se seguiu ao da aparição da senhora Veal, dia esse que foi um domingo, a senhora Bargrave sofreu muito de um resfriado e de uma dor de garganta, e não saiu de casa. Mas, na manhã de segunda-feira, ela mandou uma pessoa perguntar em casa do comandante Watson se a senhora Veal estava lá.

As pessoas da casa ficaram intrigadas com a pergunta da senhora Bargrave e mandaram-lhe dizer que a senhora Veal não estava lá, nem era esperada. Diante dessa resposta, a senhora Bargrave disse à empregada que esta certamente se enganara de nome, ou fizera alguma tolice.

E, embora estivesse doente, colocou o chapéu e foi ela própria à casa do comandante Watson, embora não conhecesse ninguém da família, para ver se a senhora Veal estava ou não lá. Eles disseram que muito os intrigava a pergunta, pois a senhora Veal não estivera na cidade; tinham certeza de que, se houvesse estado, tê-los-ia procurado.

-Estou certa - disse a senhora Bargrave - de que passou comigo no sábado quase duas horas.

Responderam-lhe que era impossível, pois eles teriam visto a senhora Veal, desde que esta houvesse vindo à cidade.
O comandante Watson chegou quando discutiam e disse que a senhora Veal estava certamente morta, e que se estava gravando o seu nome para colocar a inscrição no caixão. Isso muito surpreendeu a senhora Bargrave, que foi ver imediatamente o gravador e verificou que a notícia procedia.

Então ela relatou toda a história ao comandante Watson e família, e o vestido que a senhora Veal usara, e que riscas, que cores tinha, e que a senhora Veal lhe havia contado que era lavado.

Então, a senhora Watson exclamou:

-A senhora certamente a viu, pois ninguém sabia, além da senhora Veal e de mim, que o vestido era lavado.

A senhora Watson acrescentou que a descrição do vestido era exata.

-Pois - disse ela - eu ajudei a fazê-lo, eu própria.

A senhora Watson fez a notícia correr pela cidade, e sustentou a demonstração da verdade do que dizia a senhora Bargrave quanto à aparição da senhora Veal.

E o comandante Watson levou imediatamente dois cavalheiros à senhora Bargrave para ouvir-lhe o relato do acontecimento da própria boca.

E então a história espalhou-se com tal rapidez que cavalheiros e pessoas de qualidade, a parte judiciosa e cética do mundo, vieram vê-la em grupos, o que se tornou para ela uma tal carga que foi forçada a recolher-se; pois, em geral, acreditavam no que ela dizia, e viam claramente que a senhora Bargrave não era uma hipocondríaca, pois sempre aparecia com um aspecto tão satisfeito e agradável que conquistou a estima de todas as pessoas de posição, e pensa-se que é um grande favor obter o relato da boca da própria senhora mencionada.

Eu deveria ter contado a vocês, antes, que a senhora Veal disse à senhora Bargrave que esperava a irmã e o cunhado, vindos de Londres para visitá-la.

Respondeu a senhora Bargrave: - Como se dá que a senhora arranjou tal programa tão fora de ordem?

-Não podia ser de outra forma - afirmou-lhe a senhora Veal.

E a irmã dela e o cunhado chegaram a Dover, justo no momento em que a senhora Veal expirava.

A senhora Bargrave perguntou-lhe se queria tomar chá.

Respondeu a senhora Veal: - Não me seria desagradável. Mas garanto que aquele louco (com o que se referia ao senhor Bargrave) quebrou todos os seus utensílios de chá.

-Não obstante - disse a senhora Bargrave -, tirarei alguma coisa em que possa tomar chá.

A senhora Veal, no entanto, recusou a bebida e disse:

- Não tem importância. Deixe isso.

Todo o tempo que permaneci com a senhora Bargrave, tempo que somou algumas horas, ela rememorou outros ditos da senhora Veal. E esta disse mais uma coisa material à senhora Bargrave, a saber, que o velho senhor Breton concedeu à senhora Veal dez libras por ano, o que constituía um segredo, e desconhecido para a senhora Bargrave até que a senhora Veal o contou.

A história da senhora Bargrave nunca varia, o que intriga aqueles que põem em dúvida a verdade do relato, ou não querem reconhecê-la. Uma empregada num quintal vizinho à casa da senhora Bargrave ouviu-a falar com alguém no momento em que a senhora Veal estava com ela. A senhora Bargrave foi ter com seu vizinho de porta logo depois de despedir-se da senhora Veal, contou a tal vizinho a conversa maravilhosa que mantivera com uma velha amiga. O livro de Drelincourti sobre a morte tem sido, desde que isso aconteceu, comprado extraordinariamente. E deve ser observado que, não obstante todo o cansaço e aborrecimento que a senhora Bargrave sofreu por causa dessa aparição, ela nunca recebeu o valor de um centavo por causa do relato, nem suportou que sua filha recebesse qualquer coisa de qualquer pessoa, o que de¬monstra que não tem interesse algum nessa história.

Mas o senhor Veal faz o que pode para abafar o assunto, e diz que está pronto a ver a senhora Bargrave, mas, contudo, é uma questão de fato que esteve com o comandante Watson desde que lhe morreu a irmã, mas nunca se aproximou da senhora Bargrave. E alguns dos amigos dele dizem que ela é uma grande mentirosa, e que ela tinha conhecimento da pensão de dez libras por ano, concedida pelo senhor Breton. Mas a pessoa que afirma isso tem a reputação de um mentiroso no¬tório entre pessoas que sei serem de caráter ilibado. O senhor Veal é demasiado cavalheiro para dizer que ela mente, mas se limita a dizer que ela ficou louca em virtude dos maus-tratos que sofreu de parte do marido. Mas a senhora Bargrave não necessita de mais do que se apresentar porque, com sua presença, ela refuta essa acusação de loucura. O senhor Veal diz que perguntou à irmã, no leito de morte, se queria fazer alguma disposição testamentária, ela respondeu que não.

Agora, as coisas que a senhora Veal, em sua aparição, queria doar eram tão desprovidas de importância, não havendo nenhum propósito de fazer justiça com a doação, que o projeto daquela senhora me parece consistir em habilitar a senhora Bargrave a de¬monstrar a verdade da aparição, confirmando ao mun¬do a realidade do que vira e ouvira, e garantindo a sua reputação no meio das pessoas razoáveis e compreensivas da humanidade.

Além disso, o senhor Veal confessa que havia uma bolsa de ouro, mas que ela não foi achada na escrivaninha da senhora Veal e sim no estojo dos pentes. Isso não parece provável, pois a senhora Watson diz que a senhora Veal tomava tal cuidado com a chave de sua escrivaninha que não a confiava a ninguém. Se era assim, não há dúvida de que não colocaria seu ouro fora da escrivaninha. E o fato de que a senhora Veal passava com freqüência a mão pelos olhos e perguntava à senhora Bargrave se os ataques que ela sofria não a haviam afetado, parece-me tudo feito de propósito para relembrar os ataques à senhora Bargrave, para prepará-la a não julgar estranho que ela própria não escrevesse ao irmão para que ele distribuísse os anéis e o ouro, coisa que parecia tanto com o pedido de uma pessoa prestes a falecer. E esse foi o efeito produzido na senhora Bargrave, a quem tudo pareceu resultado dos ataques, e foi um dos muitos exemplos de seu enorme amor pela senhora Bargrave, e cuidado com ela, para que não temesse, o que transparece em toda a maneira de conduzir-se a aparição, particularmente em que veio ter com a senhora Bargrave durante o dia, quando esta estava sozinha, e evitou a saudação; e também na maneira de partir, para impedir uma segunda tentativa de saudação, de proximidade, de beijos.

Não posso descobrir por que motivo o senhor Veal julga que este relato é uma ofensa (como fica evidente pelo fato de que tenta abafá-lo), pois, em geral, as pessoas julgam que a senhora Veal é um bom espírito, dado o teor celestial de sua conversação. Seus dois grandes objetivos foram reconfortar a senhora Bargrave em suas aflições e pedir-lhe perdão pela quebra de amizade, com uma conversa pia feita para encorajar a amiga. Supor que a senhora Bargrave possa ter inventado uma tal história do meio-dia de sexta-feira até o meio-dia de sábado (desde que se acredite que ela soube de imediato da morte da senhora Veal), sem confundir circunstâncias e sem ter interesse algum na coisa, implica julgá-la mais inteligente, com mais sorte e mais velhaca também do que passará pela cabeça de uma pessoa qualquer.

Perguntei-lhe se ouviu um som quando bateu com a mão no joelho da senhora Veal. Ela diz que disso não se recorda, e acrescenta:

- Parecia ser tão substancial quanto eu, que com ela falava; e é tão possível persuadir-me de que é sua aparição que fala comigo como persuadir-me que eu não vi a senhora Veal realmente, pois eu não sofri qualquer medo. Eu a recebi como uma amiga, e como tal dela me despedi. Eu não daria um centavo para fazer com que qualquer pessoa acreditasse em mim. Não tenho qualquer interesse nisso. O que isso me acarretará, e por um longo tempo, pelo que sei, são problemas. E se a coisa não fosse divulgada casualmente, nunca teria se tornado pública.

Mas agora ela diz que fará um proveito íntimo do acontecido, e recolher-se-á o mais possível; e tem cumprido esse propósito. Ela conta que um cavalheiro veio de uma distância de trinta milhas para ouvir o relato, e que ela narrou a história para uma sala cheia de gente. Vários cavalheiros escutaram a história da própria boca da senhora Bargrave.

A coisa muito me impressionou, e nela acredito tanto quanto na história mais bem fundamentada. E parece-me estranho que tenhamos a tendência a negar a veracidade de fatos porque não podemos resolver coisas de que não possuímos noções certas ou demonstrativas.Em qualquer outro caso, a autoridade e a sinceridade da senhora Bargrave teriam bastado para confirmar o que contasse.



Daniel Defoe (1660-1731), o célebre autor de As aventuras de Robinson Crusoé foi um dos mais prolíficos escritores que se conhece, com mais de 500 títulos publicados. Entre os inúmeros gêneros que abordou (religião, política, sociologia, história, ficção, poesia) no seu jornal The Review (que ele escrevia praticamente sozinho). Defoe acreditava profundamente na reencarnação e escreveu  Contos de Fantasmas baseado em entrevistas ou relatos conhecidos. Segundo ele, os episódios aqui relacionados – com exceção dos que estão agrupados sob o título de "Falsos fantasmas" – são todos verdadeiros e, em alguns deles, ele estaria disposta a ir em juízo, levando testemunhas e provas concretas. "A aparição da senhora Veal" é um dos exemplos.

O fantasma útil

Um cavalheiro residente no campo, possuía na sua área um antigo mosteiro, já em ruínas, e resolveu demolir o que restava dele.

Logo surpreendeu-se com os custos da demolição e a remoção dos materiais. Astuto, ele imaginou uma estratégia para espalhar a notícia de que a casa era mal-assombrada.

Em pouco tempo todos os moradores da região começaram a acreditar no fantasma, pois o cavalheiro contratara um cidadão para atravessar correndo pelo interior das ruínas, envolvido num lençol branco, sempre que os moradores por ali passassem nas noites escuras.

Foi grande o número de pessoas que ouviram aquelas histórias e, apesar de não poderem distinguir de que se tratava, passaram a crer na mistificação imaginada pelo proprietário. O contratado divertia-se também, fazendo com enxofre e outros materiais de média combustão, a formação de lampejos de fogo e fumaça.

O plano surtiu seu efeito e o cavalheiro fantasiou ainda mais, passando a idéia de que naquelas fundações haviam antigas moedas de grande valor. Então o contratado, compreendendo a idéia do contratante, a cada saída fazia barulho com os pés parecendo estar cavando. Na verdade o cavalheiro se mostrava indiferente com relação às moedas e alguns cidadãos da aldeia não percebendo essa fingida displicência, propuseram fazer a escavação, desde que lhes entregasse parte das moedas. Ávidos e certos do sucesso, propuseram pôr a casa abaixo se ficassem com o dinheiro.

No entanto, o cavalheiro não concordou e achou a proposta injusta. Consentiria a escavação, desde que transportassem todo o material e o lixo, empilhassem os tijolos e as madeiras no pátio junto da casa, e se contentassem com a metade do dinheiro encontrado.

Eles acabaram concordando e puseram mão à obra. A primeira coisa que demoliram foram as chaminés - um trabalho árduo. Temendo que desistissem, o cavalheiro escondeu vinte e sete moedas de ouro num buraco, que fechou com tijolos. Quando encontraram o dinheiro se entusiasmaram e correram para o cavalheiro, que se mostrou generoso e deixou que todas as moedas fossem distribuídas entre eles, mas acrescentou que a partir dali as moedas encontradas seriam divididas com ele.

Portanto, esse primeiro bocado fez com que os camponeses passassem a trabalhar com redobrada dedicação. Tiveram ainda mais empenho quando descobriram vários objetos de valor, assim considerados por eles originários da primitiva condição de mosteiro. E assim, entre sonhos e a realidade, se animaram de tal forma que arrancaram do chão as raízes e cavaram nos alicerces na busca das moedas.

Para o cavalheiro estava tudo resolvido a custo reduzido. No entanto, tão forte era a convicção de que encontrariam mais dinheiro, que os aldeões continuavam a trabalhar ininterruptamente, como se as almas das velhas monjas ou frades estivessem ainda resguardando algum tesouro escondido, sem lhes permitir o repouso eterno, temendo que tantos anos depois ele pudesse ser encontrado naquelas ruínas de duzentos anos.


Daniel Defoe (1660-1731), o célebre autor de As aventuras de Robinson Crusoé foi um dos mais prolíficos escritores que se conhece, com mais de 500 títulos publicados. Entre os inúmeros gêneros que abordou (religião, política, sociologia, história, ficção, poesia) no seu jornal The Review (que ele escrevia praticamente sozinho). Defoe acreditava profundamente na reencarnação e escreveu  Contos de Fantasmas baseado em entrevistas ou relatos conhecidos. Segundo ele, os episódios aqui relacionados – com exceção dos que estão agrupados sob o título de "Falsos fantasmas" – são todos verdadeiros e, em alguns deles, ele estaria disposta a ir em juízo, levando testemunhas e provas concretas. "A aparição da senhora Veal" é um dos exemplos.

O diabo e o relojoeiro

Vivia na paróquia de S. Bennet Fynk, perto da Bolsa Real, uma viúva pobre e honesta, a qual, tendo perdido o marido, aceitou inquilinos em sua casa, isto é, alugou algumas peças desta a fim de reduzir a despesa do aluguel.

Entre outras, cedeu a água-furtada a um fabricante de maquinarias de  relógio, ou que fazia peças do gênero, e, segundo o hábito da época, trabalhava para as relojoarias.

Certo dia, um homem e uma mulher subiram para falar com o relojoeiro sobre alguma coisa relacionada a sua profissão. Chegando perto da escada, e vendo a porta inteiramente aberta, conseguiram enxergar o pobre infeliz (o fazedor de relógios ou de seus mecanismos) enforcado numa viga que saía da parede, um pouco abaixo do teto. Surpreendida com o espetáculo, a mulher parou e gritou para o homem que a seguia pela escada para que corresse e cortasse a corda do infeliz.

Naquele momento, de um canto do quarto, que da escada não era possível ver, corre outro homem, trazendo na mão um banco dobradiço, como quem vinha com muita pressa, e coloca-o no chão debaixo do pobre enforcado, e, apressado sempre, sobe ao banco, tira do bolso uma faca e, segurando a corda com uma das mãos, acena com a cabeça para o casal que se achava na porta, como para dizer-lhes que parassem, que não subissem, e mostra-lhes a faca na outra mão, como se estivesse a ponto de cortar a corda do enforcado.

Nisso a mulher estacou, mas o homem que estava no banco dobradiço continuava a remexer na corda com a mão e com a faca, como procurando o nó, mas sem dar o corte. Então a mulher gritou outra vez, e o homem que vinha atrás dela falou:

— Vamos subir – disse ele – supondo que havia algum obstáculo – e ajudar o homem que está no banco.

Mas o homem que estava no banco fez-lhe de novo sinais para ficarem quietos e não subirem, como a dizer: — Faço isso num instante. Deu dois cortes com a faca como se cortasse a corda e parou outra vez. Entretanto, o pobre continuava enforcado e, consequentemente, morrendo. Nisso a mulher pergunta:

— Que há? Por que não corta a corda duma vez?

E o homem que estava atrás dela, esgotada a paciência, empurrou-a para o lado e disse-lhe:

— Deixe que resolvo isso!

E sobe correndo e invade o quarto.

Mas, quando ali chegou, vejam, o mísero lá estava enforcado, porem não se via nenhum homem com faca, nem banco dobradiço, nem outra coisa qualquer. Tudo isso não passara de espectro e ilusão, destinados, sem dúvida, a deixar perecer e expirar o pobre infeliz que se tinha enforcado.

O homem ficou tão surpreso e aterrado que, não obstante a coragem de que dera mostra, caiu no chão como morto. E a mulher viu-se na obrigação de cortar a corda ao enforcado com uma tesoura, só o conseguindo com grande esforço.

Como não tenho motivo para duvidar da veracidade desta história, que soube por pessoas em cuja honestidade posso confiar, penso que não nos será nada difícil saber quem podia ser o homem do banco: era o Diabo, que lá se pusera a fim de acabar o assassínio do homem, a quem, na sua condição de Diabo, havia tentado e levado a ser o carrasco de si mesmo. O fato, aliás, corresponde tão bem a natureza do Diabo e ao seu ofício, o de assassino, que nunca o pus em dúvida. Nem me parece injustiça com o Diabo acusá-lo desse crime.

Daniel Defoe (1660-1731), o célebre autor de As aventuras de Robinson Crusoé foi um dos mais prolíficos escritores que se conhece, com mais de 500 títulos publicados. Entre os inúmeros gêneros que abordou (religião, política, sociologia, história, ficção, poesia) no seu jornal The Review (que ele escrevia praticamente sozinho). Defoe acreditava profundamente na reencarnação e escreveu  Contos de Fantasmas baseado em entrevistas ou relatos conhecidos. Segundo ele, os episódios aqui relacionados – com exceção dos que estão agrupados sob o título de "Falsos fantasmas" – são todos verdadeiros e, em alguns deles, ele estaria disposta a ir em juízo, levando testemunhas e provas concretas. "A aparição da senhora Veal" é um dos exemplos.

Licantropia sertaneja

 
Ao ilustre amigo Dr. Robert Lehmann Nitsche.
Lycaon, filho de Pelasgo, rei da Arcádia, tentou matar Júpiter, seu hóspede duma noite. Foi transformado em lobo. Para conjurar tamanho castigo, os Árcades construíram um templo a Júpiter-Lyceo (do grego, Lycos, lobo). Na Grécia, vindo dessa origem mítica, registrou-se gravemente o fenômeno. Desaparecendo a forma de um suplício, surgiu a licantropia. Era uma moléstia.
Durante o mês de Fevereiro, os licantropos pululavam. Heródoto assela-os em sua história. Em Roma, Pan era Luperco (do latim, Lupus, lobo). Daí as Lupercaes, festas votivas em Fevereiro, justamente comemoração solene dos Mortos entre os gregos...

... e a multiplicação de licantropos. Acca Laurentia, a loba, foi deificada. Em todas as estátuas e medalhas, signos e camafeus, era representada sob a forma lupina.

Para Pomponius Mela, os Neuros podiam transmudar-se em lobos. Os Neuros habitavam a Scythia, e, segundo Aristeus Proconnesius, Isigonus Nicaeiensis, Ctesias, Onescritus, Polystephanus e Hegesias, citados por Aulo Gello, era um país de assombros. Os Scythas eram antropófagos.

Nas regiões vizinhas, moravam raças espantosas, desde os Arismaspes, que tinham um só olho no meio da testa como ciclopes, até os outros homens que possuíam os calcanhares às avessas, gênese dos Matuyus que o Padre Simão de Vasconcellos devia encontrar no Brasil. Vem a série dos firmes credores do licantropo. Foram Isocrates, Varrão (em Santo Agostinho), Heródoto, Pompinius Mela, Petrônio, e Plínio, o Antigo. Petrônio descreve detalhadamente a licantropia.

Pedem a Niceros, conviva do faustoso Trimalcion, uma narrativa de aventuras. Historia o interrogado que, tendo de ir a Capua, convidou um soldado valente, seu velho camarada. Era noite de lua. Atravessando um cemitério, o soldado conjurou as estrelas, despiu-se, pôs urina nas roupas e tornou-se lobo, uivando e correndo pelo mato. Niceros não pode recolher as roupas do companheiro porque haviam tomado a forma de pedras. Atemorizado, fugiu para casa de Melissa de Tarento.

Esta contou-lhe o assalto de um grande lobo ao redil e subsequente luta com um fâmulo que ferira o animal no pescoço. No outro dia, Niceros encontrou o amigo nas mãos dum médico – tinha um profundo ferimento na nuca. Era um Versipelio, no dizer de Plínio.

A origem da lenda é naturalmente religiosa e comum ao Egito, aos Vedas, à Caldéia, às regiões da Ásia e África. Com o Império Romano espalhou-se a crendice, amalgamando outras, adaptando-se aos novos ambientes. É a repetição do caso de domínio contraproducente. O país vencedor é quase sempre influído pelo derrotado. Depois de Grécia vencida é que os Romanos conheceram a Hellade. Veio o Versipelio para Portugal com a conquista. Deve ter aí tomado o nome que hoje usa.

A licantropia deve ser de origem ética. Vingança de um ser divino em quem desobedeceu as leis sagradas de hospedagem. Os eternos viajantes gregos podiam ter posto curso a esta história antecipando pelo terror um melhor tratamento nas paragens visitadas. As narrativas de Platão, Ovídio e Pausanias sobre Licaon, tornaram-no tipo de mau hospedador. A justiça vinda do alto Olimpo caía sobre o crime de um príncipe na pessoa de um deus.

No Brasil, as complicadas teogonias selvagens exilam o versipelio. Criaram o Capelobo, animal fantástico, invulnerável, velocíssimo e perseguidor dos índios e caçadores ousados. O Capelobo é criado pelo ramo racial dos mamelucos. Não pode ser autóctone como o Anhangá e o Caipora. Para algumas tribos é o velho que já esqueceu a idade. Noutras, é um animal como o Tapuaiauara, misto de paquiderme e felino, com patas de anta e orelhas de cão.

O licantropo grego, o versipelio latino, o loup-garou de França, o vou-kadlak dos Eslavos, o verfölfe alemão, o capelobo ameríndio, estão absolutamente irmanados com o Lobisomem sertanejo.

Em Portugal o lobisomem é o filho que nasce depois de uma série de sete filhas. Em geral fica pálido, doente, tristonho, cheio de manias, quase sempre geófago contumaz. Encontrando o lugar onde os animais se espolinham, o predestinado se espoja e “vira” lobisomem. Isto às terças ou sextas-feiras. Sob a pele do fenômeno, terá de correr as sete partidas do mundo, sete adros, sete vilas, sete outeiros, sete encruzilhadas. Ao terceiro cantar do galo retoma a forma humana. É de notar o uso de um número que a astrológica caldaica tornou fatídico – o 7. Para desencantá-lo é mister o signo de Salomão, a estrela de dois triângulos. Vendo-a, perde o veso das correrias. Podem matá-lo também. Invulnerável a tiro, é sensível a qualquer ferro aguçado. Quem manchar-se no sangue do lobisomem, herda o hábito.

Para o Sertão o lobisomem está fixado em dois modos: como castigo e como moléstia. A reminiscência de Licaon é patente no primeiro caso. Júpiter, pai dos homens, castigou um filho espúrio, fazendo-o lobo. O mau filho é candidato a lobisomem. O “doente” é pessoa apontada comumente. Magro, descarnado, vacilante, de olhos apagados e face decaída, o licantropo sertanejo é um tipo vulgar de opipalo, uma vítima da verminose, mais filho do helminto que de Belzebu. Em casos especiais, o malefício se opera determinado por uma lei de punição suprema.

É o raríssimo incesto. O incestuoso ou seu descendente mais próximo, será lobisomem. Semelha à manceba do vigário que é a “Burrinha de Padre”, trotando pelos descampados, se, por funesto acaso o pároco esqueceu de amaldiçoá-la antes de celebrar missa.

O cerimonial para ser-se lobisomem é simples. Na noite da quinta para a sexta-feira, antes das 11 horas, o futuro loup-garou matuto dirige-se ao local onde os animais se espojam. Quase sempre na encruzilhada existe o capim machucado e revolto pelos irracionais preguiçando. Depois de despir-se, põe a roupa pelo avesso, dá sete nós na camisa e rola da esquerda para a direita, reunindo os pés e as mãos. Daí em diante, como na história de Petrônio, lupus factus est, ululare coepit, et in silvas fugit.

Até o terceiro cantar do galo, o lobisomem galopa e rincha, berra e foge, espalhando terror. Ataca os caminhantes solitários para sugar-lhes o sangue. Vendo duas pessoas, esconde-se. Picando-o à faca, “quebram” o fado por aquela noite. É vulnerável a tiro. Some-se ouvindo o canto do galo. O galo, em todas as histórias e lendas sertanejas, é o libertador do medo, o vencedor das trevas, augúrio do Sol, arauto do dia longínquo. Não há fantasma ou alma penada que resista a seu canto sonoro. Curioso é lembrar-se que Apolônio de Tiana evocou a sombra de Aquiles e esta desapareceu após o galo ter cantado. Quando a coruja, o mocho e o corvo servem de emblemas às bruxarias e maldades, o galo é o símbolo da alegria, das forças sadias e votadas ao Bem. É ele, ancestralmente, o inimigo do Demônio.

Ferunt, vagantes Daemonas
Laetos tenebris noctium,
Gallo canente exterritos
Sparsim temere, et cedere.

Cantava o poeta Prudêncio, já cristão e amável louvador do ilustre galináceo. De um antiquíssimo canto que fazia parte da liturgia na diocese de Salisbury, havia estrofes cheias de amizade e carinho, onde se destacava esta afirmativa:

Gallo canante spes redit.

Acresce aos atributos divinos do Galo, além de fazer reaparecer a esperança, a honra de ter sido a primeira ave a anunciar o nascimento de Jesus. Cristo nasceu! É o canto dos galos na noite de Natal.

Com o estridor sonoro de seu grito, o lobisomem grune e rosna, mas, receia e foge.

Todos aqueles que anotaram a vida sertaneja, dedicam largas páginas ao Lobisomem. Henry Koster registrou-o em sua viagem de Recife a Camocim. Gustavo Barroso, um dos verdadeiros conhecedores do Sertão, ilustre e consciente folclorista, narra uma história ouvida por mim vezes diversas.

Um casal ia visitar um amigo que morava distante. Atravessando uma capoeira, o marido pretextou ligeira necessidade e meteu-se pelo mato. Daí a minutos a mulher era assaltada por um animal furioso. Defendendo-se, sacudiu o xale de lã vermelha na goela da fera e fugiu, trepando numa árvore. O bicho sumiu-se. No outro dia, a mulher, reparando na dentadura do marido que dormia ressupino, encontrou nos dentes, as felpas do xale vermelho: o marido era o lobisomem. O monstro não respeita rezas nem invocações aos Santos. Antonio Ferreira, morador em Estivas, teve uma luta com um lobisomem durante duas horas. Gritou pelo Céu inteiro, tentando ferir o bicho à faca. Pela madrugada, semiexausto, pode segurar um galho de aroeira e salvar-se. A velha Victoria Maria, pernoitando numa casinha entre Timbó e Curral de Baixo, município de Ceará-Mirim, teve ocasião de assistir um encantamento, pondo fim ao bruxedo com um pequeno golpe de machadinha no braço do pseudo fantasma.

Uma das mais extraordinárias histórias é a do vaqueiro José Francisco de Paula na Fazenda São Tomé, em Santa Cruz, largamente conhecida pelos comboieiros e traficantes de algodão e sal. Sob o alpendrado, rara seria a noite em que, cinco ou seis vaqueiros e mascateantes, não dormissem, contando, à ceia, aventuras e viagens.

Numa noite em que estava o casal sozinho, ouviu-se o latido desenfreado dos grandes cães de caça que José Francisco possuía. Não prestou atenção. Em cada semana, da quinta para sexta-feira, os cães “acuavam” barulhosamente. Finalmente o vaqueiro entreabriu, altas horas, a janela e viu passar, seguido pelos cachorros enfurecidos, um animal corpulento, meio-baixo, roncando e batendo insistentemente as largas orelhas de perro.

Daí a dias, um comboio pernoitou na latada. Narraram-se assombramentos e caçadas. José Francisco historiou o caso. Um do grupo, adoidado e façanheiro, bateu na coronha do bacamarte, jurando morte ao monstrengo assustador. Veio a treva. Ao nascer da lua, pelas proximidades da meia-noite, ouviram o tonitroar dos cães e a marcha resfolegada de um bicho correndo. Aperraram as armas. De gatilho alçado, esperaram. De repente o abantesma surgiu. Estalaram as espoletas e uma descarga relampejou num estrondo pelo pátio deserto e mudo. O animal, num ronquejo horrendo, caiu pela barranca do rio já seco no verão escaldante que se iniciava.

Correram para lá. Era um lobisomem. Ferido de morte, não se desanimalizara inteiramente. Da cintura para cima, era um homem moreno, forte, de nariz aprumado, mãos delicadas, cabeleira castanha, encaracolada, um desses mestiços de família, criados na ociosidade das vilas sertanejas: da cintura para baixo, semelhava um porco, sarrudo, cheio de lama e de garranchos, os cascos firmemente cravados na areia frouxa do rio. Enterraram-no ali mesmo. José Francisco de Paula mudou-se para Estivas onde morreu anos depois, sem nunca esquecer a noite da caçada impressionante e trágica.

Francisco Teixeira, Seo Nô, por muito tempo nosso guarda num sítio, reproduziu, inconscientemente, a narrativa de Niceros, no Satiricon petroniano. Trabalhando num engenho de açúcar, Nô passava o serão levando em descrédito as aparições e bruxarias comentadas pelos companheiros. Um deles, João Severino, meio zangado, declarou-lhe que, em breve tempo, se arrependeria de zombar dos lobisomens. Os colegas do eito foram explicando ao Nô que ele andasse armado e não fosse muito longe das casas.

Uma noite atravessando uma varjota, Nô encontrou-se com um bezerro grande, todo negro e peludo que se precipitou num salto sobre ele. Nô bateu mão da faca e lutou deveras. Sentindo-se cansado, sacudiu uma facada bem dirigida, apanhando o agressor no pescoço. Este, grunhindo, correu. Pela manhã, não vendo João Severino entre os habituais cortadores de cana, inquiriu e veio a saber que ele estava doente. Correndo até a casa, encontrou-o de nuca amarrada e bebendo mezinhas. Estava com um corte no pescoço. Se Nô soubesse latim teria citado Petrônio: intellexi illum versipellem esse.

Os milheiros de histórias de lobisomens são quase iguais. É sempre o animal atacando ou fugindo com uma picadela de mais. O antídoto é o “sino saimão”, “sino salamão” ou sinal de Salomão, a cruz feita em dois triângulos, com a palha santa no domingo de Ramos. Põe-na no lugar dos encantamentos. Vendo-a, o versipelio nunca mais beiradeja córregos e bufa, aos trancos, por descampados e várzeas. Se esconderem a roupa, ficará sempiternamente lobisomem.

Acredito que essas superstições, de cunho rigidamente moral, tenham sido postas em circulação pelos letrados, como elemento de ordem ética, equilibrando para uma melhor conduta, a gente semi-bárbara do Sertão.

O medo ao sobrenatural, o castigo após a morte, a vastidão das penas, o tempo sem fim do remorso, são, através das idades, bases naturais das religiões. Seria inútil mostrar de como a Igreja Católica soube inteligentemente popularizar os seus dogmas, usando lendas cultuadas desde a mais remota ancianidade.

Os Neuros de Heródoto e Pomponius Mela, os homens-serpentes dos Vedas, são necessariamente utilizados como persuasão e terror. Aqui já se não dá o auto-milagre dos Neuros. O lobisomem é castigo, uma penalidade infamante e arriscada a morte certa. Por isso, talvez, o elemento letrado, indicando maior tendência à moralização dos costumes, não obstou a propagação da crendice, ajudando-a, antes, porque ela expressava um meio idêntico, com maior eficácia. Dá-se como ultrajante e hórrida, sorte a deste animal vagabundo semipoderoso e semifrágil. Para atemorizar o sertanejo se fez mister uma pena, prolongada após a morte. Sem temer a lei, zombando da força e habituado às batalhas dos elementos, o sertanejo, sub-raça que se adaptara a todos os climas, necessitava desta ambiação mítica, pressão à sua luxúria porejante, à sua avareza latente, ao seu temperamento irrequieto, dentro de aparente insensibilidade.

Estranho, misterioso, surgindo do intricado negro dos juremais, saltando, inopinado, da sombra escura das faveleiras e cardeiros esguios, correndo pelo ondulado relvoso das pradarias, o lobisomem, pecado vivo, dentro da grande noite supersticiosa, mantém sempre acesa a perene formação de assombros.

Agora que estamos tentando possuir uma literatura brasileira, sem o estreito regionalismo e pondo na Arte o mundo poliforme das esperanças nativas, o folclore sertanejo terá um papel eficiente e decisivo fixando a fisionomia espiritual do Povo, nas suas manifestações de crença, atitude ancestralmente definidora da moral coletiva em face duma geração que interroga e analisa.

É o coração humano, inquieto e palpitando em presença do susto, do sobrenatural e do inexplicável.

Sob a jaqueta de lã do Bretão ou na gibona de couro do vaqueiro, o pavor é idêntico, vendo, debaixo das oiticicas imensas ou na penumbra dos menhirs batidos pelo luar, a figura ligeira e negra, impressionadora e terrível do loup-garou, do lobisomem, capelobo dos índios, erudito versipellio, herança atávica do medo na alma triste dos homens...
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Fonte: Revista do Brasil, São Paulo, Ano VIII, n. 94 p. 129-133, out. 1923.
Acervo do Instituto Câmara Cascudo – Ludovicus

Franz Kafka e a desesperança

A desesperança e a alienação do homem moderno, imerso num mundo que não consegue compreender, estão magistralmente descritas na obra de Kafka, escritor tcheco de expressão alemã.

Franz Kafka nasceu em Praga, então pertencente ao império austro-húngaro, em 3 de julho de 1883, de família judia remediada. Sua infância e adolescência foram marcadas pela figura dominadora do pai, comerciante próspero, para quem apenas o sucesso material contava.

Na obra de Kafka, a figura paterna está freqüentemente associada à opressão ou aniquilação da vontade humana, especialmente na célebre Brief an den Vater (1919; Carta a meu pai).
Na formação intelectual de Kafka tiveram peso especial a leitura de Heinrich von Kleist, Flaubert, Pascal e Kierkgaard e o ambiente de Praga, cidade medieval gótica dotada de elementos eslavos, alemães e de barroco sombrio.

De 1901 a 1906, estudou direito na Universidade de Praga, onde conheceu seu grande amigo (e posterior biógrafo) Max Brod. Começou então a freqüentar os círculos literários e políticos da pequena comunidade judaico-alemã, na qual circulavam idéias e atitudes críticas e inconformistas, com que Kafka se identificava. Concluído o curso, empregou-se em 1908 numa companhia de seguros, como inspetor de acidentes de trabalho.

Apesar da competência profissional e da consideração que lhe dispensavam os colegas de trabalho, Kafka sempre se sentiu insatisfeito, pois o emprego o impedia de dedicar-se totalmente à atividade literária. Também a vida emocional foi conturbada, com noivados e amores infelizes.

Tais circunstâncias acentuaram o sentimento de solidão e desamparo que nunca o abandonaria e que ele próprio manifestou nos fragmentos publicados em 1909 sob o título Beschreibung eines Kampfes (Descrição de uma luta) e publicado na íntegra em 1936. Nessa inquietante e perturbadora narração, que passou quase despercebida, o mundo dos sonhos, tema constante na produção do autor, adquiria uma desconcertante e persistente lógica no mundo da realidade.

Em 1912 Kafka escreveu a maior parte do romance Amerika, que permaneceu inacabado e foi publicado postumamente em 1927. Em vida, publicou apenas Die Verwandlung (1915; A metamorfose), em que o personagem acorda certo dia transformado num imenso e repugnante inseto; Das Urteil (1916; A sentença); In der Strafkolonie (1919; Na colônia penal), que narra as torturas a que são submetidos presidiários que desconhecem a natureza dos crimes que cometeram; e Ein Landarzt (1919; Um médico rural), coletânea de contos.

Suas obras-primas, Der Prozess (1925; O processo) e Das Schloss (1926; O castelo), só foram publicadas postumamente por Max Brod. Nesses romances, a ambigüidade onírica do peculiar universo kafkiano e as situações de absurdo existencial chegam a limites insuspeitados. No primeiro, o bancário Joseph K., por razões que nunca chega a descobrir, é preso, julgado e condenado por um misterioso tribunal. A desolada poesia de sua obra, em estilo sóbrio e realista, não nascia, porém, da resignação, mas do desejo de encontrar um fundamento espiritual capaz de explicar a contradição entre o desejo humano e a realidade cotidiana.

Afligido pela tuberculose, Kafka submeteu-se, a partir de 1917, a longos períodos de repouso. Em 1922 deixou definitivamente o emprego e, excetuadas breves temporadas em Praga e Berlim, passou o resto da vida em sanatórios e balneários.

Morreu em 3 de junho de 1924, em Kierling, perto de Viena. Contra o desejo expresso do escritor, que queria que seus inéditos fossem queimados após sua morte, Max Brod publicou romances, textos em prosa, correspondência pessoal e diários de Kafka. Sua obra teve profunda influência sobre movimentos artísticos como o surrealismo, o existencialismo e o teatro do absurdo.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

Roger Corman

Roger Corman, cineasta, nasceu em cinco de abril de 1926, em Detroit, Michigan. É produtor, realizador, argumentista e, de vez em quando, ator. Estudou engenharia industrial na Universidade de Stanford, mas a paixão pela Sétima Arte o desviou para o cinema em 1953, tornando-se o diretor apelidado de "o rei da série B" do cinema americano.

Transformou-se numa celebridade no mundo do entretenimento, em sua freqüência incomum dirigindo e produzindo filmes em larga escala, chegando a produzir sete películas em um ano.

Fez filmes em dois dias e uma noite, com orçamentos de meia dúzia de dólares, um punhado de atores e um só cenário; é um dos nomes independentes históricos de Hollywood; assinou nos anos 60 uma série de adaptações de culto de contos de Edgar Allan Poe interpretadas por atores como Vincent Price, Peter Lorre, Boris Karloff e um novato chamado Jack Nicholson; e lançou as carreiras de nomes como Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Peter Bogdanovich, James Cameron, Joe Dante, Jonathan Demme ou Ron Howard.

Entre 1954 e o presente ano, Roger Corman já produziu e realizou mais de 400 filmes, gabando-se de ter perdido dinheiro apenas com um, The Intruder (1962), uma história anti-racista com William Shatner.

Formado em engenharia pela Universidade de Stanford e ex-aluno de Literatura Inglesa em Oxford, Corman já tocou praticamente em todos os gêneros, com particular ênfase no terror, na ficção científica, no filme de ação e de gangsteres e no policial. Em 1990, Roger, publicou as suas memórias, apropriadamente intituladas How I Made a Hundred Movies in Hollywood and Never Lost a Dime.

Filmografia


The Beast With a Million Eyes (1956, não creditado)
The Day the World Ended (1956)
It Conquered the World (1956)
O Emissário de Outro Mundo (Not of This Earth, 1957)
Attack of the Crab Monsters (1957)
The Undead (1957)
Teenage Caveman (1958)
War of the Satellites (1958)
A Bucket of Blood (1959)
A Mulher Vespa (The Wasp Woman, 1959)
O Solar Maldito (The Fall of the House of Usher, 1960)
A Pequena Loja dos Horrores (The Little Shop of Horrors, 1960)
The Last Woman on Earth (1960)
A Mansão do Terror (The Pit and the Pendulum, 1961)
Creature from the Haunted Sea (1961)
A Torre de Londres (Tower of London, 1962)
The Premature Burial (1962)
Muralhas do Pavor (Tales of Terror, 1962)
Terror no Castelo (The Terror, 1963)
O Corvo (The Raven, 1963)
O Homem dos Olhos de Raio-X (X, The Man With the X-Ray Eyes, 1963)
O Castelo Assombrado (The Haunted Palace, 1963)
A Máscara Mortal (The Masque of the Red Death, 1964)
O Túmulo Sinistro (The Tomb of Ligeia, 1964)
Bloody Mama (1970)
Ga-s-s-s! Or it became necessary to destroy the world in order to save it (1970)
Deathsport (1978, não creditado)
Frankenstein, o Monstro das Trevas (Frankenstein Unbound, 1990)

Fontes: Biografia curta de Roger Corman; nostalgia: Roger Corman; Wikipédia.

O grande viúvo

Na volta do cemitério, ele falou para a família:

— Bem. Quero que vocês saibam o seguinte: — minha mulher morreu e eu também vou morrer.

Houve em torno um espanto mudo. Os parentes entreolharam-se. O pai do viúvo ergueu-se:

— Calma, meu filho, calma!

Jair virou-se, violento:

— Calma porque a mulher é minha e não sua! Pois fique sabendo, meu pai: — eu não tenho calma, não quero ter calma e só não me mato agora mesmo, já, sabe por quê?

Uma tia solteirona atalhou:

— Tenha fé em Deus!

Por um momento, Jair esteve para soltar um palavrão. Dominou-se, porém. Numa serenidade intensa, fremente, completou:

— Não me mato imediatamente porque quero fazer o mausoléu de minha mulher. Aliás, dela e meu. Quero dois túmulos, lado a lado. E vocês já sabem: — desejo ser enterrado com Dalila, perceberam?

Ninguém disse nada, e vamos e venhamos: — é muito difícil argumentar contra o desespero. E quando Jair passou, imerso na sua viuvez, a caminho do andar superior, os presentes o acompanharam com o olhar, esmagados de tanta dor. Ele subiu lentamente a escada e foi trancar-se no quarto.

O INCONSOLÁVEL

Na ausência do rapaz, um tio arrisca: — “Será que ele se mata?”. O pai apanha um cigarro e dá a sua opinião:

— Não creio. Cão que ladra não morde.

Ponderam:

— Às vezes, morde.

E o velho, que era um descrente de tudo e de todos:

— O que sei é o seguinte: — a dor de um viúvo ou de uma viúva não costuma durar mais de quarenta e oito horas.

— Não exageremos!

O pai, porém, insistia, polêmico:

— Sim, senhor, perfeitamente! — E referiu um caso concreto, que todos conheciam: — Por exemplo: — a nossa vizinha do lado. O marido foi enterrado de manhã e, de tarde, ela estava no portão, chupando Chicabon. Isso é dor que se apresente?

O episódio do sorvete calou fundo na sala. Sentindo o sucesso, o velho carregou no otimismo:

— Vamos dar tempo ao tempo. Isso passa. — E concluiu, profundo: — Tudo passa.

A DOR

Quinze dias depois, porém, o viúvo estava tão desesperado como no primeiro momento. Não se podia dar um passo naquela casa que não se esbarrasse, que não se tropeçasse num retrato, numa lembrança da morta. E mais: — sabia-se, por indiscrição da arrumadeira, que Jair dormia, todas as noites, com vestidos, camisolas, pijamas da esposa. Certa vez, foi até interessante: — ele meteu a mão no bolso e tirou, de lá, sem querer, uma calcinha da falecida. O próprio pai já não sabia o que dizer, o que pensar. Começou a rosnar que o filho estava “le-lé”, “tantã”. Com seu implacável senso comum, chegou a cogitar de internação. Tiveram que chamá-lo à ordem:

— Internação para saudade? Para viuvez? Sossega o periquito!

— Mas qualquer dia ele mete uma bala na cabeça, ora pipocas!

Alguém lembrou o que Jair dissera, isto é, que só se mataria quando estivessem concluídas as obras do mausoléu. Diante desse filho que entupia os bolsos com as calcinhas da falecida, o ancião gemia: — “Por que que uma grande dor é sempre ridícula?”. Desesperava-o que Jair passasse os dias no cemitério, agarrado a um túmulo, chorando como no primeiro dia. E o pior é que a viuvez do filho era altamente declamatória. De volta do cemitério, ele vinha para casa deblaterar:

— Não se esquece a melhor mulher do mundo! Eu desafio que alguma mulher chegue aos pés da minha!

Dalila era muito mais amada morta do que em vida. O próprio Jair acabou sentindo um certo orgulho, uma certa vaidade, dessa dor que não arrefecia. E continuava fiel à idéia do suicídio. Batia sempre na mesma tecla: — não acreditava nos viúvos e nas viúvas que sobrevivem. E quando, certa vez, o pai quis argumentar contra esse suicídio datado, ele cortou:

— Meu pai, não adianta: — o senhor já perdeu seu filho. Sou, praticamente, um defunto.

E coisa curiosa: — fosse por auto-sugestão ou por motivo de saúde, o fato é que a pele de Jair adquiria um tom esverdeado de cadáver.

O OUTRO

Então, a família começou a procurar, desesperadamente, uma maneira de salvá-lo. Foi quando um primo longe de Jair teve uma idéia. Chamou o pai do rapaz e começou:

— Olha aqui, o negócio é o seguinte: — só há um meio de curar Jair.

— Qual?

O outro baixa a voz:

— Destruindo o amor que o prende à falecida.

O velho esbugalha os olhos: — “Mas como? Com que roupa? É impossível!”. Seguro de si, o primo encosta o cigarro no cinzeiro:

— “Nada é impossível!”. Pigarreia e continua:

— Digamos que se descobrisse, de repente, que a falecida teve um amante.

O outro pulou:

— Mas Dalila era honestíssima, séria pra chuchu!

Ri o primo:

— Que era séria, sei eu. Mas até aí morreu o Neves. — Novo pigarro e insinua: — Nenhuma mulher, viva ou morta, está livre de uma boa calúnia. Podíamos inventar, não podíamos, um amante de araque? E quem pode provar o contrário?

Pálido, o pai balbucia:

— Continua.

E o outro:

— Ora, uma vez convencido de que Dalila foi uma vigarista, Jair perderia, automaticamente, a paixão. Compreendeu o golpe?
Custou a responder:

— Compreendi.

A REVELAÇÃO

O achado da calúnia era tão persuasivo que, depois de uns escrúpulos frouxos, a família aprovou a idéia. Disseram, a título de escusa: — “Os fins justificam os meios”. Uma manhã, enquanto prosseguiam no cemitério as obras do mausoléu, convocam o viúvo. O pai, nervoso, começa perguntando: — “Você tem certeza que sua esposa merecia a sua dor?”.

Jair percebeu, no ar, a insinuação. Aperta o pai, que, em dado momento, não tem outro remédio senão desfechar o golpe: — “Embora seja muito desagradável falar de uma morta, a verdade é que Dalila teve um amante!”.

O viúvo recua: — “Que amante? Como amante?”. E não queria entender. Então, possuído pela calúnia, cada um, ali, confirmou que sabia do amante, sabia da infidelidade. Atônito, ele perguntava: — “Mas quem era ele? Quero o nome! Quero a identidade!”. A verdade é que ninguém tinha pensado no detalhe.

Fora de si, Jair agarrou o pai pelos dois braços e o sacudia:

— Eu estou disposto a acreditar no amante. Mas quero saber quem foi. Quem é? Digam! Pelo amor de Deus, digam!

O pai refugiou-se na desculpa pusilânime: — “Diz-se o milagre, mas não o nome do santo!”. Então, o filho fez, na frente de todos, promessas delirantes: — “Vocês pensam que eu vou matar? Fazer e acontecer? Juro que não! Não tocarei num cabelo do cara!”. E berrava, no meio da sala:

— Se me disserem quem foi, eu não me matarei! Preciso desse homem para viver! Ele será meu amigo, meu único amigo, para sempre amigo! Digam!

Pausa. Espera o nome. E como ninguém fala, ele dá um pulo para trás e puxa o revólver que, desde a morte da mulher, jamais o abandonava. Encosta o cano na fronte: — “Ou vocês dizem o nome ou me mato, agora mesmo!”. Então, o pai vira-se na direção do primo e o aponta:

— Ele!

Apavorado, o primo não sabe onde se meter. Jair pousa o revólver em cima do piano. Aproxima-se do outro, lentamente. Súbito, estaca e abre os braços para o céu:

— Graças por ter encontrado quem possa falar de Dalila, comigo, de igual para igual!

Agarra o primo em pânico: — “Diz para esses cabeças-de-bagre se ela foi ou não a melhor mulher do mundo?”. E chorava no ombro do pobre-diabo, como se este fosse, realmente, seu irmão, seu sócio, seu companheiro em viuvez.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.