segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O sacrilégio

No fim de quinze dias de namoro, ele veio com a idéia:

— Sabe de uma coisa? Preciso te apresentar à mamãe.

— Quando?

Ele pensou um pouco:

— Que tal amanhã?

— Ótimo!

Combinaram então, de pedra e cal, que seria no dia seguinte, de qualquer maneira. Desde que se conheciam e se namoravam que Márcio quase só falava na santa senhora. Era mamãe pra cá, mamãe pra lá. E afirmava mesmo, num desafio a qualquer outra opinião em contrário:

— A melhor mãe do mundo é a minha. Só vendo!

E de tanto ouvir falar na futura sogra, Osvaldina fazia a reflexão meio irritada: “Ora bolas! Pensa que só a mãe dele presta e as outras não!”. Fosse como fosse, preparou-se para conhecer uma senhora tão exaltada nas suas virtudes esplêndidas. Antes, Márcio, atarantado, fez-lhe mil e uma advertências: “Batom não, meu anjo! Mamãe não gosta de pintura”. E, já a caminho, ele teve outra lembrança: “Nada de gíria, porque mamãe não tolera gíria”. Enfim, conheceram-se a nora e a sogra. O filho precipitava-se a todo momento:

— Não senta aí, não, mamãe. Faz golpe de ar!

AS DUAS

Inicialmente, a velha, sem dizer uma palavra, e sem nenhuma cordialidade aparente, imobilizou a pequena com um desses olhares implacáveis, que parecem despir a pessoa, virá-la pelo avesso. Em seguida, em tom seco e inapelável de ordem, disse:

— Sente-se.

E, com o rosto impassível, inescrutável, foi fazendo perguntas sobre perguntas. Antes de mais nada, quis saber se Osvaldina era religiosa. A menina, presa de uma inibição mortal, admitiu:

— Acredito em Deus, mas não sou carola.

E a velha:

— Que bobagem é essa? Não é carola por quê? Pois devia . ser carola!

Osvaldina, atônita, tinha vontade de se enfiar pelo chão adentro:

— Eu? — balbuciou.

— Claro, evidente! É alguma desonra ser carola? Diga? É? Ora veja!

Depois de duas horas de conversa, em que a futura sogra se serviu dela e a desfrutou, de alto a baixo, sem o menor tato ou contemplação, Osvaldina saiu de lá desorientada. E quando ela e Márcio tomaram o ônibus, a pequena teve um suspiro:

— Santa Bárbara!

Márcio, sem perceber a depressão pavorosa da namorada, deu largas ao seu entusiasmo de filho e fã:

— É ou não é o que te disse? A melhor mãe do mundo? Batata!

O TRIO

Quando começaram a procurar apartamento para casar, Márcio fez a advertência:

— Olha, rua de bonde não serve porque mamãe tem sono muito leve. Acorda com qualquer barulho.

Osvaldina caiu das nuvens:

— Quer dizer, então, que ela vai morar com a gente?

E ele, quase ofendido com a pergunta:

— Mas claro! Então, você acha o quê? Que eu ia abandonar minha mãe? E sofrendo do coração? Nem que o mundo viesse abaixo!

Osvaldina suspirou apenas. Mas sua decepção foi uma coisa tremenda. Mais tarde, contaria em casa a novidade. Foi um deus-nos-acuda. Disseram francamente:

— Sogra e nora morando juntas é espeto!

Osvaldina admitiu, atribuladíssima:

— Eu também acho! Eu também acho!

Passaram-se dois ou três dias. E, então, a pequena, em conversa com o namorado, propõe o problema.

— Tua mãe vai morar com a gente. E quem vai ser a dona de casa?

— Ela.

— Como?

Márcio explodiu:

— Mas carambolas! Então, você acha que minha mãe, uma senhora, vai receber ordens de uma garota como você? Que diabo! Será que você não pensa, não raciocina?

PRIMEIRA NOITE

Houve um momento em que, quase, quase, Osvaldina mandou o namorado passear. Mas a verdade é que o amava com um desses amores de fado, uma dessas paixões que escravizam a mulher. Aceitou a coabitação com a sogra, teve a exclamação fatalista e melancólica:

— Seja o que Deus quiser!

Casaram-se. Ela desejaria, no seu fervor de noiva, uma lua-de-mel fora, num hotel de montanha. Ele, porém, a desiludiu positivamente:

— E a mamãe? Você se esquece da mamãe? Imagine se, em casa, sozinha, ela tem uma coisa, imagine!

Novo suspiro de Osvaldina:

— Paciência!

Para que negar? Essas coisas a enfureciam, a prostravam. Mas enfim casaram-se e a lua-de-mel foi mesmo no apartamento. Na primeira noite, aconteceu apenas o seguinte: à uma hora da manhã, despedido o último convidado, os recém-casados recolheram-se, no deslumbramento que se pode imaginar. Era o momento em que tanto um como o outro podiam dizer: “Enfim, sós”. A primeira providência de Márcio foi fechar a luz principal do quarto. Ficou acesa apenas a lâmpada discreta, na mesinha-de-cabeceira. Então, o noivo, estreitando a pequena nos braços, delirou:

— Meu anjinho!

Sua mão correu por debaixo da camisola até o joelho ou pouco acima.

Foi neste momento, precioso e inesquecível, que bateram na porta. Era, como não podia deixar de ser, d. Violeta. O filho instantaneamente desligou-se do seu próprio êxtase, arremessou-se. Osvaldina trincou os dentes; fez o comentário interior: “Velha miserável!”. E Márcio, aflito, atendia a d. Violeta.

Simplesmente ela abusara de doces, de camarões, de carne de porco, na festa do casamento. Torcia-se, agora. O filho desesperado pôs a mão na cabeça:

— Eu não disse à senhora para não comer camarão? A senhora é teimosa que Deus te livre!

O pobre-diabo foi botar a capa de borracha em cima do pijama para comprar elixir paregórico. Quis que, enquanto isso, a noiva ficasse com d. Violeta. A pequena, porém, de bruços na cama, num desespero tremendo, disse, entredentes:

— Não fico com tua mãe coisa nenhuma! Eu vou é dormir!

O FUROR

Osvaldina ficou abandonada no quarto, numa solidão de viuvez, ao passo que o marido se desvelava à cabeceira materna. A sogra interrompia seus ais para fazer a observação ressentida: “Tua mulher nem pra saber se eu morri!”. De fato, a menina jamais perdoou, nem à sogra, nem ao marido, o naufrágio da primeira noite nupcial. Foi franca:

— Meu filho, nossa lua-de-mel foi-se por água abaixo!

Ele protestava:

— Deixa de ser espírito de porco! Teu gênio é de amargar!

Então, as duas instalaram, naquele apartamento, um inferno. Está claro que, prestigiada pelo filho, d. Violeta levava sempre a melhor. E Márcio, entre os dois fogos, virava-se para a mulher:

— Você tem assinatura com minha mãe!

Osvaldina não podia ouvir um programa de rádio, porque d. Violeta irrompia, lá de dentro, para mudar de estação. As humilhações, as incompatibilidades, os desacatos eram tantos que, um dia, chorando, a nora colocou o problema nos seguintes termos histéricos:

— Uma de nós duas tem que morrer!

Semelhante declaração transpassou Márcio. Ele recuou dois passos, de olhos esbugalhados. Dir-se-ia que a mulher era um chacal, uma hiena. Quis que Osvaldina, imediatamente, pedisse perdão pela blasfêmia. Ela foi irredutível, no seu rancor. E, de noite, honestamente ressentido, o rapaz, muito sereno e viril, comunicou-lhe:

— De hoje em diante, durmo na sala.

E ela:

— Ótimo. É melhor assim.

DESENLACE

Durante umas duas semanas, com integral apoio materno, dormiu na sala. Já d. Violeta, exultante com o incidente, soprava ao ouvido do filho que “o negócio era separação”. Todos os dias, com método, com técnica, a velha punha mais lenha no ressentimento do rapaz, açulava o seu rancor. E ele já não olhava mais para a mulher. Fazia questão de ignorar a sua existência. Com os amigos, perdera as cerimônias; confessava: “A situação lá em casa está braba”. Pausa e admitia: “Acho que vou me separar de fulana”.

No dia, porém, em que ia procurar um advogado amigo para tratar do desquite, foi chamado às pressas. Voou para casa. Um desses edemas agudíssimos e inapeláveis fulminou d. Violeta. Morreu nos braços do filho. Osvaldina, que estava perto, fez seus cálculos: “É agora que ele se atira do décimo sexto andar”.

Mas não, Márcio chorou e sentiu, não há dúvida. Menos, porém, do que ele próprio poderia esperar. E tanto que, enquanto vestiam a defunta, o rapaz, na sala, choroso, surpreendeu-se a fazer uma coisa detestável e quase sacrílega.

Pois não é que, sem sentir, sem querer, estava admirando a mulher, o corpo, a curva do quadril, como se visse Osvaldina pela primeira vez? Quis desviar o pensamento para rumos mais piedosos e fúnebres. Todavia, o encanto continuava.

Espantado, apertando na mão o pranteadíssimo lenço, pasmava: “Ora bolas!”.

O fato é que se sentia prodigiosamente outro. Algo se extinguira nele, talvez um medo ou quem sabe? Às três horas da manhã, estavam ele, a esposa e dois ou três parentes, fazendo quarto, à sombra dos quatro círios. De repente, ele não se contém: levanta-se, vai até a porta e chama a mulher.

Osvaldina obedece. E então, no corredor, o rapaz dá-lhe um beijo, rápido e chupado, na boca. Sua mão deslizou, crispando-se numa nádega vibrante. Depois, sem uma palavra, lambendo os beiços, voltou. Trêmulo, de olho rútilo, senta-se entre os parentes que cochilavam.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

A mulher das bofetadas

Chegou atrasado no emprego. Tirava o paletó, quando o Carvalhinho veio avisar:

— Olha, telefonaram pra ti.

— Homem ou mulher?

— Mulher.

— Deixou recado?

— Não. Disse que telefonava depois. Arregaçando as mangas, bufou:

— OK! OK!

Uns dez minutos depois, estava pondo em ordem uns papéis, quando o telefone bate novamente. O contínuo, que atendeu, berrou:

— Aristides!

Larga o serviço e apanha o telefone. Era uma voz feminina que, a princípio, não identificou. A pessoa perguntava: — “Não me conheces mais?”. Aristides, já impaciente, foi quase grosseiro:

— Quer dizer quem fala? Estou ocupadíssimo e não posso perder tempo.

Há uma pausa e, finalmente, a voz responde:

— Sou Dorinha.

Aristides quase cai para trás, duro.

Dorinha era o seu amor jamais esquecido ou, melhor, a sua dor-de-cotovelo confessa e imortal. Que idade teria ela, no momento? Uns vinte e cinco anos. Tinham se namorado na adolescência. Por um motivo bobo, haviam brigado. E quando Aristides, devorado pela nostalgia, quis voltar, ela já estava apaixonada por um outro, o Gouveia. Durante uns seis meses, Aristides andou pensando, dia após dia, em meter uma bala na cabeça. Acabou renunciando ao suicídio, mas ficou-lhe, para sempre, o sofrimento surdo. Dorinha casara-se com o Gouveia, tinha dois filhos de Gouveia. E sempre que a via, acidentalmente, na rua, Aristides precisava tomar um pileque dantesco. E, súbito, ela telefona, a inesquecível, a insubstituível Dorinha! Ao impacto da surpresa, gagueja:

— Ah, como vai você?

— Bem. E você?

— Navegando.

E, então, Dorinha diz-lhe:

— Preciso muito falar contigo.

— Comigo? E quando?

— Já.

— Pois não. Estou às tuas ordens. — E, na sua ternura sofrida, pergunta: — Tu sabes que mandas em mim, não sabes?

Combinaram o encontro, para daí a vinte minutos, numa sorveteria da rua da Carioca.

Aristides largou o serviço, que estava atrasadíssimo, e correu para o elevador. Daí a dez minutos, estava no local. Encontrou-a mais linda, mais fresca do que nunca. Diante da mulher que nunca deixara de amar, não se conteve. Com o coração disparando, começou:

— Sou todo teu. Nunca deixei de te amar.

Tomando refresco, com canudinho, Dorinha vai falando:

— Eu preciso de um favor teu. Mas quero que prometas que não pensarás mal de mim.

O espanto do rapaz foi uma coisa sincera e profunda:

— Você acha que eu posso fazer má idéia de ti? Oh, Dorinha!

Então, sem desfitá-lo, Dorinha disse:

— Meu marido partiu hoje, ao meio-dia, para São Paulo. De hoje para amanhã, eu sou uma espécie de solteira ou, então, de viúva. De qualquer maneira, uma mulher livre. Pensei em você, que merece toda a minha confiança e... Está compreendendo?

Numa confusão total, balbuciou:

— Mais ou menos.

E ela:

— Para falar português claro: — estou oferecendo a minha tarde. Leva-me!

Deslumbrado, exclama:

— Oh, Dorinha!

Ele pagou, trêmulo, a despesa.

Saem e, lá fora, Dorinha observa:

— Mas não devo me expor. Arranja um interior, sim?

Acontece que Aristides mantinha, de sociedade com um amigo, um apartamento em Botafogo. Cheio de escrúpulos, baixa a voz: — “Eu tenho um lugar, assim, assim, discretíssimo”. Dorinha interrompe: — “Ótimo!”. Tomam um táxi, que ia passando. A caminho de Botafogo, a pequena começa:

— Você, naturalmente, está espantado e querendo uma explicação.

Protesta, veemente:

— Explicação nenhuma! Basta o fato em si! Você está aqui, comigo, a meu lado, e não interessam os motivos, argumentos, nada!

Quando entraram, uns quinze minutos depois, no apartamento, Aristides não sabia o que dizer. Ainda uma vez, Dorinha toma a iniciativa:

— Você não me beija?

Ofereceu-lhe a boca. Aristides experimentou uma espécie de vertigem. O primeiro beijo, depois de tanto tempo, foi uma dessas coisas que marcam para sempre. Em seguida, ele a carrega no colo, como uma noiva de fita de cinema. Uma hora e pouco depois, já a noite entrara no apartamento e Dorinha estava diante do espelho, refazendo a pintura. Aristides veio, por trás, beijar-lhe os ombros nus; e suspira:

— Eu não sabia que gostavas tanto de mim!

Dorinha vira-se, com divertida surpresa:

— Mas eu não gosto de ti.

Atônito, pergunta:

— E isso que aconteceu entre nós? Não conta?

A pequena está de pé:

— Era a explicação que eu queria te dar e que tu recusaste. O meu marido, ontem, discutiu comigo e me deu uma bofetada. Estou aqui por causa da bofetada. Mas amo o meu marido e só meu marido.

Ele insiste, desesperado:

— Quer dizer que não vamos continuar?

Responde:

— Depende. Se meu marido me bater outra vez, já sabe: — eu telefono pra ti.

Sem uma palavra, na maior humilhação de sua vida, deixou-a partir.

Mas quando a porta fechou-se atrás da pequena, ele caiu, de joelhos, no meio do quarto, mergulhou o rosto nas mãos e soluçou como uma criança.

Durante uma semana, ele foi o ser mais humilhado e mais ofendido da Terra.

Dizia de si para si: — “A cínica! A cínica!”. E pior é que era incapaz de sentir atração por qualquer outra mulher. Uns quinze dias depois, ele atende o telefone: — era ela. Perguntava, alegremente:

— Vamos lá, outra vez?

Foram. E, no apartamento, ela suspira:

— Imagina, deu-me outra bofetada.

Encontraram-se outras vezes, sempre em função de novas bofetadas. Até que, uma tarde, entre um beijo e outro, ela exclama:

— Os homens são muito burros!

— Por quê?

E Dorinha:

— Tu não percebeste que não houve bofetada nenhuma? Que meu marido não me esbofeteou nunca? E que eu te amo, te amo e te amo?
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.