domingo, 28 de agosto de 2011

Patrimônio

Benedito aguardava na fila do cartório para registrar o filho, nascido dias antes. Era o quarto, aliás o quinto, mas é que um morrera ainda pequenino e esse Benedito não contava.

Quatro filhos! Pensando bem até que não era muito. Podiam vir outros, é claro, mas Bene­dito achava difícil. Estava ficando velho; a mulher também.

Benedito sorriu ao lembrar a mulher de outros tempos. Bem jeitozinha até. Agora Isaura estava um caco, mas foi um pedaço. Se foi! Para um casal pobre, eles tinham poucos filhos, sim: quatro. Pobre costuma ter muito mais filho. Pobre não tem mais nada pra fazer.

Alguém fora atendido lá na frente, a fila andou um pouquinho. Benedito deu um passo à frente. Ali mesmo na fila estava a prova. Quase tudo gente pobre como ele, para registrar filho. Gente que pouco mais do que aquilo poderia fazer pelo recém-nascido. Era registrar; o resto viria como Deus permitisse. Se, com três filhos, sua vida já era fogo, imagine com mais este.

Mas Benedito tinha um plano para dar um patrimônio à criança. Rememorava: tivera a idéia quando tomava um troço no botequim, perto da Casa da Mãe Pobre, onde Isaura era atendida. Quando entrou e pediu a cachaça, não pensava em nada. Tinha sido um impulso besta, ir até o botequim, sentar, pedir a bebida. E ali ficou bicando devagarinho, ouvindo a conversa dos outros.

Numa mesa próxima, três sujeitos conversavam, falando de política. Todos eles estavam de acordo num ponto: nada tinha melhorado, pelo menos para eles. Muda governo, discute-se, persegue-se, mas para eles era sempre igual.

— Igual não! Pior. Sempre pior! - protestou o que estava de frente para Benedito.

Os homens ficaram calados por um tempo. Um deles serviu-se de cerveja. O líquido dourado subiu pelo corpo, fazendo espuma, e transbordou. O homem afastou o corpo de junto da mesa, com medo de que pudesse se molhar. Depois riu amargo e falou:

— O galão da cerveja está recordando o cretino que eu fui.

Os outros esperaram para saber que cretino fora o companheiro:

— Meu pai fez tudo para me encaminhar no Exército e eu não quis. Já pensaram? Nesta altura não era galão de cerveja que eu teria não.

— Fala, Coronel — disse um deles, mexendo com o que sonhava.

— Coronel não. General. Tô ficando velho. Já podia ser general.

A fila andou de novo; Benedito deu mais um passo.

Da lembrança daquela noite, no café, enquanto esperava o filho nascer, passou para outras recordações. Sempre ouvira dizer que há pais que dão nomes estranhos aos filhos. Lembrou-se do caso que lhe contaram do menino registrado pelo pai logo depois de um carnaval. A criança foi registrada e batizada com o nome de Lança-Perfume Rodo Metálico. Benedito tinha lido nos jornais que a Polícia proibira lança-perfume. Será que proibiram também o tal de Rodo Metálico de circular por aí, por causa do nome? Riu da idéia.

Olhou para a frente. Estava quase na sua vez. Na hora não iria titubear. Já sabia participar daquele ritual de cor e salteado. Quinto filho. A fila ia se deslocando e Benedito ia pensando que todo o pai tem a obrigação de fazer o que puder pelos filhos. Ele pouco pudera fazer, até ali, pelos que já tinha, mas, pelo recém-nascido, faria alguma coisa. Tinha uma boa idéia.

Chegou a sua vez. Encostou no balcão e o auxiliar do escrivão apanhou uma folha limpa. Ficou esperando as perguntas:

— Nome do pai! É o próprio?

— Sou. Benedito. Benedito da Conceição Lopes.

— Lopes?

— Lopes.

— Mãe?

— Isaura Lopes.

— Como vai se chamar a criança?

— General Lopes.

— General? Mas General não é nome.

— Eu sei. Mas eu queria que se chamasse General. É um menino. O senhor compreende, eu sou pobre, ele também será. Quem sabe, quando ele crescer, os outros chamando ele de General, talvez, não sei... Talvez ele consiga ser mais do que eu fui... o senhor compreende?

O funcionário do cartório olhou para Benedito, mas, pelo olhar angustiado do pai, viu que ele não brincava: queria mesmo que o filho se chamasse General.

— Um momento - disse, e foi consultar o escrivão. Confabularam um instante, o escrivão olhou para Benedito e balançou a cabeça. General não podia.

— Então bota João - falou Benedito.

E saiu do cartório mais triste que nunca.

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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.

O homem que mastigou a sogra

Foi em Niterói! É o caso do Sargento Gilson Calado, que não é tão calado assim e, depois de botar a boca no trombone, por causa das imposições da ex-futura sogra, gorda senhora de sólido físico e sólidos princípios, avançou para a indefesa senhora "prostrando-a com diversas dentadas na região cervical", isto é, mordeu-lhe o cangote dela com força.

Diz que a vítima (a vítima da agressão, porque no caso em si, Calado era muito mais vítima), Dona Laudenira Santana, era fogo e não deixava a filha ir nem na esquina sozinha, muito menos acompanhada. O sargento, no entanto, já tinha estabilidade, não só porque era noivo da filha de Dona Laudenira, como também já estava há cinco anos noivando firme.

— O senhor quer conversar com ela, tem que ser aqui na sala — dizia a gorda e implacável futura sogra. — A Delia só sai de casa comigo.

Delia — eu ia esquecendo de dizer — era a noiva do Calado. E convenhamos: assim era demais. Se ao invés de "pra casar" o sargento estivesse paquerando na base do "pra que é", ainda vá... mas noivo no duro; um tremendo noivo de cinco anos; era chato!

Sempre a mesma coisa. O sargento chegava, batia continência pra Dona Laudenira e ia pra sala, onde ficava a Delia num canto e ele no outro, só de olho, porque a velha dava uma incerta a toda hora. Qualquer silêncio maior, ela botucava o ambiente.

Até que chegou o domingo. A situação, que encheria até saco de filo, permanecia a mesma e Calado resolveu contrariar o nome de família, metendo lá um independência ou morte, às margens de Dona Laudenira. Chegou pra ela e vomitou:

— Olha, dona, eu e a Delia vamos até à esquina, dar uma voltinha.

— É o que você pensa, rapaz! — teria respondido a vigilante maternal ao vigilante municipal (Calado é sargento da Polícia Municipal). - Eu já disse e repito que a Delia só sai de casa comigo.

Aí foi aquela forra: Calado avançou para a futura sogra e quando esta virou as costas para se mandar, ele deu com aquele suculento cangote a tremer na sua frente, de raiva e medo. Não conversou, tacou-lhe a primeira dentada, a segunda, a terceira... enfim, deu de goleada.

Tão alucinado ficou que, ao ver a Delia tomando a defesa da mãe, deu-lhe uma dentada de sobra, no nariz. O noivado tá desfeito. O sargento satisfeito.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).

Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.

Traído por ser bom

Pondo os suspensórios, pergunta:

— Como vai a besta do teu marido?

Vilma boceja:

— Navegando.

Edgard começa a dar o nó na gravata. Pensa naquele homem que era traído regularmente, três vezes por semana. Quer saber:

— E ele não desconfia de nada? Tens certeza?

— Absoluta.

Finalmente, já de paletó, Edgard resume sua opinião:

— Esse negócio de adultério não depende da mulher, e sim do homem, da vocação do homem. O sujeito já nasce “marido enganado”.

E Vilma:

— Um chato.

O MARIDO

Só quando ela passou pela Central é que viu as horas: — dez da noite. Tomou um susto. Estava casada com um homem que, segundo a opinião de todo mundo, tinha o defeito de ser bom demais. E, com efeito, ninguém mais doce, mais paciente, mais terno, do que Aristóteles Passarinho. Não se lhe conhecia, em toda a existência, uma vaga e inofensiva irritação. Quem brigava, naquela casa, era Vilma; Passarinho, nunca. Nem com a esposa, nem com ninguém. A pequena vinha de uma família de nervosos. O pai acabara no hospício e ela mesma levava, no mais íntimo de si mesma, o medo, o pressentimento da loucura. Conhecera Edgard numa fila de ônibus e fora o que se pode chamar de uma conquista fácil. Logo da primeira vez, o rapaz quis saber por que ela traía o marido. Vilma vacilou. Eis a verdade: — não havia motivo nenhum, respondeu, vaga:

— É de uma bondade que dá nojo.

Há dois anos que durava aquele romance secreto. Naquela noite, Vilma perdera a noção do tempo. Entrou em casa às dez e trinta e cinco. Embora desprezasse o marido, achou que era demais. E, pela primeira vez, criou a hipótese: — “Será que ele vai dar a bronca?”. Mas foi encontrá-lo como sempre, com a mesma cordialidade mansa, o mesmo olhar amável, o mesmo sorriso bom. Levantou-se ao vê-la:

— Tudo OK?

Vilma percebeu que se assustara à toa. Teve para si mesma o comentário irritado: — “Boba!”. E quando ele inclinou-se para beijá-la, ela fugiu com o rosto. Surpreso, Aristóteles balbuciou, sem entender a repulsa:

— Que é isso, meu bem? — Ela explodiu:

— Fui eu que cheguei e sou eu que devo beijar, se quiser, e não você.

O outro riu, vermelho:

— Está certo, meu anjo, está certo.

Assim escorraçado, foi ler a página de esporte da última edição.

DESESPERO

Talvez faltasse um pouco de medo ao romance proibido. Aquele adultério sem sobressaltos, sem correrias, sem incidentes, pouco diferia da rotina matrimonial. Vilma fez para si mesma o raciocínio: — “Não tenho amante. Tenho dois maridos”. O pior de tudo, porém, era a personalidade de Aristóteles. Seria real aquela cegueira ou simulada? E, um dia, em que ela o destratou, ele respondeu com tanta doçura que ela, nervosíssima, perdeu a cabeça de vez:

— Por que é que você não grita comigo?

E ele:

— Meu anjo, não se deve gritar com ninguém!

Cresceu para o marido:

— Não se deve gritar, uma ova! Por que não, ora pipocas? Já sei o que você quer: — quer me humilhar com a sua bondade! Você vive esfregando na minha cara a sua superioridade. Mas fique sabendo: — estou até aqui, percebeste? Até aqui!
Aristóteles, ao seu lado, consternado, não sabia o que dizer, o que fazer. Viu a mulher atirar-se em cima de uma cadeira, aos soluços. Ele próprio já tinha vontade de chorar. Para não irritá-la mais, porém, calou-se. Vilma continuava, por entre lágrimas:

— Eu preferia que você me batesse! Mil vezes a pancada!

O pobre-diabo abriu os braços:

— Quem sou eu para te bater?

O DRAMA

No dia seguinte, uns dez minutos depois do marido ter saído, bate o telefone. Ela se precipita: — era o Edgard. Queria saber como a pequena chegara e se o marido fizera algum comentário. Vilma abriu o coração:

— Já não agüento! Não suporto mais!

O amante admirou-se:

— Ele te fez alguma coisa?

Explica:

— Não me fez nada. Mas eu é que não suporto. O que não me entra é a mania da bondade. Se fosse como os outros, como todo mundo! Mas quer ser melhor, compreendeu?

Edgard pondera:

— Se quer ser bom, ótimo. Imagina se ele fosse de dar pancadas ou tiros? Afinal de contas, a que horas tu chegaste ontem? Dez e lá vai fumaça. Pois é, meu anjo: não é todo mundo que suporta esses desacatos. Foi ou não foi um desacato? Foi, lá isso foi!

Esse raciocínio devia impressioná-la. Ela, porém, reagia sempre:

— Te digo, com pureza d’alma: — eu preferia um marido brabo a esse mosca-morta.

— E, chorando, continua: — “Isso não é homem! Não é nada!”.

Conversaram ainda, no telefone, algum tempo. Edgard aconselhou-lhe calma, acima de tudo. A verdade é que ele dava graças a Deus de que o enganado fosse terno e assim inofensivo. Exagerou mesmo: — “É, tem nome de passarinho e alma de cambaxirra!”. Antes de se despedir, Vilma disse:

— Qualquer dia apareço em casa às três horas da manhã. E quero ver se ele vai topar. Só quero ver!

O DESAFIO

No primeiro dia em que foi ao apartamento com o Edgard, começou: — “Queres saber de uma coisa? Vou me separar!”. Ele toma um susto: — “Por quê, carambolas?”. Vilma apanha um cigarro:

— O sujeitinho me encheu! Basta!

Então, por uma boa e farta meia hora, Edgard tratou de doutriná-la. Que não fizesse isso, que não valia a pena, que era melhor deixar como estava. Argumentou: — “Não incomoda. É inofensivo”. Tanto falou que, afinal, ela suspira: — “Vá lá, vá lá!”. Em seguida, agarra-se ao amante:

— Mas, então, só te largo às duas horas da manhã. Serve? Serve?

Recua:

— Por quê?

Diz:

— É uma experiência. Quero ver se a bondade dele é de araque ou batata. Se ele não disser nada, então eu não entendo bolacha de coisa nenhuma!

Assim combinaram e assim fizeram, embora o protesto vago de Edgard: — “Vocês, mulheres, são de amargar!”. Às duas da manhã, o rapaz a levou num táxi e soprou-lhe, por despedida: — “Cuidado! Qualquer coisa, põe a boca no mundo e corre!”. Ela chegou em casa às duas e meia. Estava lá o marido, em pijama, fumando. Trêmula, ansiosa, ela o encarou. Era impossível que, desta vez, ele não a interpelasse. Aristóteles, porém, limitou-se à pergunta:

— Já jantaste?

Ela enfureceu-se:

— Será possível que eu chego às duas da manhã e que você não diga nada? Não tem vergonha, não tem nada? Pelo amor de Deus, responde: — não queres saber onde eu estive e com quem estive?

E ele, sem desfitá-la: — “Eu acredito em ti”. Agarrou-o pelos dois braços:

— E se eu te disser que estive com um amante? E se eu te disser que tenho um amante?

Há uma pausa. Custa a responder: — “Se tens um amante é porque eu não soube amar, nem soube ser amado”. Vilma trinca os dentes:

— Basta! Basta!

O FIM

Não dormiu aquele resto de noite. Com os olhos abertos, no escuro do quarto, repetia para si mesma: — “Odeio essa bondade!”. Pela manhã, deixa o marido dormindo, levanta-se, apanha um lápis e sai escrevendo pelas paredes: — “Morro, porque o meu marido é bom demais!”.

Em seguida apanhou o fio do ferro elétrico, fez um laço e enforcou-se no fundo do corredor.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Rainha de Sabá

Saíram juntos da festa. E o amigo vinha entusiasmado:

— Foi contigo! Fez fé com tua cara!

Referia-se a Teresinha Seixas, que não tirara os olhos do Asdrúbal, num flerte escandaloso. Tinha sido uma coisa de chamar a atenção. Raimundo, eufórico como se o beneficiado fosse ele, atiçava o outro:

— Está pra ti. Dá em cima, que é canja. Quero ser mico de circo se ela não entregar os pontos.

Mas o Asdrúbal, que era um tímido e exagerava as dificuldades, coçava a cabeça:

— O negócio não é assim como você diz. É muito mais complicado.

— Complicado o quê! Barbada. E, ainda por cima, uma sujeita cheia da “erva”. Tem pra lá de vinte mil contos. Sabes lá o que é isso?

Despediram-se, afinal. E o Asdrúbal, sujeito sem vintém, escravo do salário, entrou em casa com aquilo na cabeça: vinte mil contos! Tirou a roupa e, nu da cintura para cima, ficou ruminando a situação que subitamente se criara na sua vida. O fato é que Teresinha, filha do Seixas dos lotações, parecia interessadíssima e ele já se via rico, milionário, o diabo.

ROMANCE

No dia seguinte, pela manhã, quando Asdrúbal entrou no emprego, encontrou o Raimundo à sua espera. Tomara-se de um interesse medonho pelo caso. E foi logo intimando: “Olha aqui, sua besta: você vai telefonar agorinha mesmo para fulana”. Asdrúbal, que tinha horror da ação, quis escapar. Mas ele, implacável, coagiu o outro e foi ao cúmulo de fazer a ligação. Asdrúbal, quisesse ou não, teve que falar. Gaguejou no telefone, suou, meteu os pés pelas mãos. Raimundo, do lado, bufava: “Mas que animal!”. E foi preciso que Teresinha, desembaraçadíssima (sabia até francês), conduzisse a conversa e inventasse os assuntos.

No fim de dez minutos, a timidez de Asdrúbal evaporava-se. Já se permitia até piadas. Raimundo soprou: “Marca um encontro! Marca um encontro!”. O rapaz acabou tomando coragem e sugerindo o encontro. E quando Raimundo percebeu que Teresinha concordava, assoviou de pura delícia. Finalmente, despediram-se. E então, triunfante, Raimundo cantou vitória:

— Mulher, quando cisma com um cara, já sabe. Está no papo, direitinho!

E Asdrúbal maravilhado: “Veremos. Veremos”. Pensava nos lotações do sogro e suspirava.

Horas depois, num café, ainda confabulavam; e foi então que, baixando a voz, Raimundo insinuou: “Tu me arranjas um emprego com o velho, não me arranja? Vê lá! Sou teu, do peito!”. E insistiu:

— Mas um emprego bacana. Micharia não interessa!

E começaram os encontros. Ofuscados pelo dinheiro da pequena, os dois amigos esqueciam-se de um pequeno detalhe: ou seja, a própria pequena. Tinham desta uma idéia vaga, nebulosa. E se lhes pedissem para descrever o feitio do nariz, do queixo, do corpo de Teresinha, não saberiam fazê-lo. Ignoravam, honestamente, se era bonita, feia ou simpática.

NOIVOS

Num instante, a menina meteu o namorado dentro de casa. Asdrúbal conheceu o pai, mãe, irmãs e tias. Jantou lá e suou frio quando serviram o peixe. Não sabia direito qual o garfo. Já por ocasião da sopa, recebeu um impacto tremendo, pois a moça soprou-lhe: “Faz menos barulho”. Saiu humilhado e, ao mesmo tempo, mais preso do que nunca àquela família.

E, pouco a pouco, foi contando à menina as suas dificuldades e, sobretudo, as desconsiderações que sofria no emprego. Aliás, o amigo o industriara: “Conta miséria, rapaz”. E o Asdrúbal, segurando a mão da pequena, gemia: “O chefe tomou assinatura comigo”. Ela o considerava um anjo, espantava-se:

— Mas por quê?

— Porque não sou puxa como os outros. Digo o que tenho de dizer e pronto.

Teresinha, solidária, reforçava:

— Faz bem, se ele se fizer de besta, mete-lhe a mão na cara.

— E o emprego?

— Por minha conta. — E acrescentou: — Fome você não passa.

Raimundo, quando soube da conversa, inflamou-se:

— Ótimo! Se ela garante o negócio, nem se discute.

O fato é que Asdrúbal passou a ser outro no escritório. Ele que sempre se caracterizara pela subserviência mais deslavada, pela humildade mais constrangedora — roncava grosso e já falava em “quebrar caras”. Um dia, o chefe soube que ele não saía do telefone e o convocou para o competente sabão:

— Que negócio é esse que andam me contando? O senhor pensa que isso aqui é a casa da Mãe Joana? Não, senhor, absolutamente!

A princípio, por uma questão de hábito, Asdrúbal ouviu só, calado. Mas lembrou-se de que o dinheiro do sogro cobria a retaguarda. Num instante, estava de dedo espetado na cara do chefe: “Seu palhaço! Vem cá para fora que eu te parto a cara. Cretino!”. O chefe, lívido, numa crise de pânico, escondia-se detrás dos móveis e punha a boca no mundo. Tiveram que arrastar Asdrúbal, aos apelos de “não faça isso”. Nos corredores, ele ainda esbravejava: “Eu sou é homem!”.

Da rua telefonou para a pequena, ainda heróico; terminou com a insinuação: “Estou sem emprego e imagina o abacaxi: devo três meses do quarto!”.

O LAR

O sogro deu-lhe emprego na firma. Raimundo, animado com o exemplo, brigou no emprego, disse uns desaforos ao patrão. Mas este, corpulento e feroz, correu com ele a taponas. Desempregado, o rapaz passou a viver às custas do Asdrúbal. Mordia-o, diariamente, em dez, vinte cruzeiros; e estava sempre reclamando: “Vê se te casas e me arranja o tal emprego”. Meses depois, casava-se Asdrúbal. E parte para a lua-de-mel. No último momento, Raimundo fez-lhe um substancial pedido de dinheiro: quinhentos cruzeiros. O sogro fez a advertência: “Trata bem minha filha, rapaz, que tu estás feito”.

Durou trinta dias a lua-de-mel e, quando voltou, Asdrúbal parecia espantado. Começava a conhecer verdadeiramente a mulher. Até então, ele, na embriaguez do casamento rico, não tomara conhecimento dos defeitos e qualidades físicas e morais de Teresinha. A experiência conjugal abria-lhe os olhos.

Descobria, antes de mais nada, que ela era somítica demais. Tomava conta do dinheiro, regateava até o último tostão, examinava todas as contas. Sempre que, numa boate, ele se permitia uma gorjeta muito alta, ela o imprensava: “Parece até que o dinheiro é teu. Calma, calma no Brasil!”. E, não raro, o advertia antes: “Cuidado que meu pai custou muito a ganhar esse dinheiro!”.

Voltaram da montanha para morar num palacete, na Gávea. Vamos e venhamos: não lhe faltava nada. Casa de luxo, automóvel, piscina de mármore, garçom, o diabo. E, na rua, os lotações do sogro continuavam atropelando pedestres, E conseguiu, mesmo, um emprego de contínuo para o Raimundo, na firma.

Mas ao chegar de fora teve uma surpresa: todas as criadas, de sua casa, eram pretas. Veio perguntar à mulher:

— Que negócio é esse?

E ela, categórica:

— Claro, ora essa! Ou você pensa que eu sou alguma boba? Pois sim! Criada branca não me entra aqui!

— Mas, criatura!

— Sim, senhor! Só preta e olhe lá! Não acredito em homem nenhum! Eu que ponha uma criada bonitinha aqui, para ver o que acontece!

A RAINHA DE SABÁ

Entre as cinco ou seis empregadas, havia uma, Mariana, que se destacava das demais. Quando Teresinha a viu teve um muxoxo: “Hum! hum!”. Mas deixou-se convencer pela cor. Porque a menina, com seus dezenove anos, era uma figura singular. No Carnaval anterior, saíra de Rainha de Sabá num rancho, com espetacular sucesso. E Teresinha dizia para as visitas: “Tem bom corpo, mas é preta!”.

Mergulhado até o pescoço na nova vida, Asdrúbal procurava Raimundo. Parecia meio descontente; suspirava: “Não sei o que há comigo”. Raimundo, que era agora contínuo e de uniforme, fazia uma síntese:

— Vida chata, meu Deus do céu!

De vez em quando, ele ia à casa do amigo, levar encomendas. Um dia, chamou Asdrúbal a um canto: “Tens, em casa, um material de primeira”. Espanto de Asdrúbal: “Quem?”. E o outro: “A Mariana”. Asdrúbal fez a restrição racial: “Mas é preta!”. Raimundo saltou:

— Deixa de ser burro! Pode ser preta, mas que perfil. E o corpo, menino!

A verdade é que Raimundo, inferiorizado dentro do uniforme de contínuo, tomava-se de ódio contra Teresinha. Em casa, na cama, devorado pelos percevejos, ele ruminava: “Vou fazer a caveira dessa gaja!”. Não sabia como, mas... Sempre que podia, interpelava Asdrúbal: “Como vai a Rainha de Sabá? Ah, se eu fosse você!”. E Asdrúbal, cruzando com Mariana, no corredor, já a olhava de uma certa maneira.

O amigo o sugestionava: “Deixa de preconceito besta!”.

O CHEQUE

No dia em que Asdrúbal fez trinta e cinco anos, a mulher preparou um grande jantar, com a presença de muitos parentes, inclusive dos pais. Quando todos se sentaram à mesa, o Asdrúbal apanhou o guardanapo e um papel caiu no chão. Surpreso, curvou-se e apanhou. Era um cheque de quinhentos mil cruzeiros! Enquanto ele, vermelhíssimo, relia a importância, os parentes batiam palmas e o sogro anunciava:

— Para uma viagem a Paris e outros bichos!

Teresinha ergueu-se e veio beijá-lo na testa. Então, aconteceu o seguinte. De pé, à cabeceira da mesa, o rapaz olhou ainda uma vez o papel e, sem exaltação, com método, o rasgou em não sei quantos pedacinhos. Houve alarido na sala. Que é isso? Está louco? Bêbado? Mas todos emudeceram quando ele, em voz forte e nítida, anunciou:

— Comunico que vou me desquitar de minha mulher, aqui presente. E que me casarei com minha criada, Mariana, no México, no Uruguai ou no raio que o parta.

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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

A sexy Raquel Welch

Raquel Welch (Jo Raquel Tejada), atriz, nasceu em Chicago, Illinois, EUA, em 05 de Setembro de 1940. É filha do boliviano Armando Carlos Tejada Urquizo (1911-1976) e de Josephine Sarah Hill (1909-2000), descendente do presidente John Quincy Adams (o sexto presidente dos EUA, que governou entre 1825 e 1829). Mais ainda: é parente da ex-presidenta da Bolívia, Lidia Gueiler Tejada.

Rachel tornou-se símbolo sexual dos anos 60 quando emergiu das águas do mar num biquini pré-histórico. O filme era "Um milhão de anos A.C" (1966), e a partir daí, ela capturou os corações masculinos. Assumindo o título que outrora foi de MM, tornou-se uma deusa do sexo sem ser loira.

Raquel Welch como Loana em 'One Million Years BC' (1966)

Welch mudou-se com a família para San Diego, California quando tinha apenas dois anos. Tomando aulas de dança, ela cresceu e ganhou diversos títulos de beleza ("Miss Photogenic," "Miss La Jolla," "Miss Contour," "Miss Fairest of the Fair" e "Miss San Diego").

Estudou no Colégio San Diego State e se casou com seu então primeiro marido James Wesley Welch em 1959. Tiveram dois filhos. Raquel tornou-se a garota do tempo na TV de San Diego e acabou desistindo dos estudos. Divorciada, em 1965, ela foi com os filhos para Dallas, no Texas, onde trabalhou como modelo e garçonete.

Trabalhou em diversos e famosos seriados da TV americana nos anos 60 e também em filmes como "Rosutabout" (1964) e "Do not disturb" (1965).

Em 1968, causou alvoroço quando fez cenas de sexo com o ator negro Jim Brown, no filme "100 rifles". Nos anos 70, tentou ser levada a sério como atriz e acabou fazendo papéis que foram aclamados pela crítica em "Kansas City Bomber" (1972) e "The wild party" (1975) . Em 1973, ela ganhou o Golden Globe pelo filme "The three musketeers" (1973).

Nos anos 80 fez mais programas de TV e lançou vídeos de exercícios físicos. Raquel aproveitou seus modestos dotes de cantar e dançar, ela fez show em Las Vegas. Ainda bastante em forma mesmo tendo passado dos 60 anos, Raquel foi casada mais três vezes, a última com Richard Palmer, que era 15 anos mais novo que ela.

Filmografia

A House Is Not a Home (1964)
Roustabout (1964)
A Swingin' Summer (1965)
The Queens (1966)
Fantastic Voyage (1966)
One Million Years B.C. (1966)
Shoot Loud, Louder… I Don't Understand (1966)
The Oldest Profession (1967)
Fathom (1967)
Bedazzled (1967)
The Biggest Bundle of Them All (1968)
Bandolero! (1968)
Lady in Cement (1968)
100 Rifles (1969)
Flareup (1969)
The Magic Christian (1969)
The Beloved (1970)
Myra Breckinridge (1970)
Hannie Caulder (1971)
Bluebeard (1972)
Fuzz (1972)
Kansas City Bomber (1972)
The Last of Sheila (1973)
The Three Musketeers (1973)
The Four Musketeers (1974)
The Wild Party (1975)
Mother, Jugs & Speed (1976)
The Animal (1977)
Crossed Swords (1978)
Trouble in Paradise (1989)
Tainted Blood (1993)
Chairman of the Board (1998)
What I Did for Love (1998)
Tortilla Soup (2001)
Legally Blonde (2001)
Jim Brown: All American (2002)
Forget About It (2005)

Fontes: belasatrizesdomundo2; Raquel Welch - Infopédia; Estadao.com.br; Wikipedia.

Anita Ekberg

Anita Ekberg (Kerstin Anita Marianne Ekberg), atriz, modelo e miss, nasceu em Malmö, Suécia, em 29 de setembro de 1931. Foi uma cultuada "sex symbol" dos anos 60, assim conhecida após sua aparição no filme "A Doce Vida", obra-prima do cineasta italiano Federico Fellini.

Ekberg começou a trabalhar como modelo para revistas de moda na adolescência e, em 1950, com o incentivo da mãe, participou e venceu o concurso de Miss Malmö, da sua cidade, sendo depois eleita Miss Suécia de 1951. Foi então para os Estados Unidos representar o país no Miss Universo, em Long Beach (foto abaixo: dançando em Zarak, 1956).

Apesar de não vencer o concurso, ficou entre as seis finalistas, o que lhe garantia um contrato como starlet do Universal Studios, como parte do prêmio do concurso na época. Nos EUA, Ekberg conheceu Howard Hughes, milionário produtor de filmes, que a convidou a trabalhar para ele mas queria que ela trocasse de nome e fizesse plástica no nariz e nos dentes. Howard dizia que 'Ekberg', nome sueco, era difícil de pronunciar para o americano comum. Ela entretanto recusou-se a mudar de nome, dizendo que se ficasse famosa, iam aprender a pronunciá-lo e caso não ficasse, o nome não teria qualquer importância. Como contratada do estúdio, ela passou a receber aulas de interpretação, dança, locução, hipismo e esgrima.

A combinação da beleza física e a agitada vida particular e social de Anita logo a transformaram numa pin-up e em presença constante nas páginas de revistas mundanas e masculinas da mídia norte-americana, o que a tornou uma das maiores pin-ups dos anos 50.

Anita ficou famosa nos Estados Unidos após uma turnê feita com o comediante Bob Hope, em que substituiu Marilyn Monroe, doente, transmitida nacionalmente pela televisão. Na metade da década, ela começou a trabalhar para outros estúdos e foi contratada pela Paramount Pictures para trabalhar com Jerry Lewis e Dean Martin em "Artistas e Modelos" (1955) e "Ou Vai Ou Racha" que lhe deram grande projeção popular. No mesmo ano, ela foi para a Europa filmar com o diretor King Vidor, na versão de "Guerra e Paz", em que fez o segundo papel feminino depois de Audrey Hepburn.

Depois de alguns filmes menores até o fim da década, ela finalmente teve a chance de fazer o filme que a tornaria um ícone, quando foi convidada por Federico Fellini para viver Sylvia, famosa atriz sueco-americana em "A Doce Vida". O filme foi um grande sucesso de público e crítica e sua cena noturna na Fontana di Trevi, banhando-se num vestido de noite negro, tornou-se um dos mais icônicos momentos da história do cinema.´

O sucesso de "A Doce Vita" a levaria a fazer "Boccaccio 70" com Sophia Loren e Romy Schneider e mais dois filmes testemunhais com Fellini em anos seguintes, "I clowns" (1970) e "Intervista" (1987), novamente com Mastroianni, onde representa a si mesma. Nos últimos anos, suas aparições na tela, esporádicas, têm sido apenas em pequenos filmes europeus e na televisão italiana (foto abaixo: com Mastroianni em La Dulce Vita).


Anita teve uma vida amorosa agitada, casando-se duas vezes, a primeira com o ator britânico Anthony Steel (1956-1959) e depois com Rik Van Nutter (1963-1976) mais conhecido pelo papel de Felix Leiter, o contato americano na CIA de James Bond, em "007 contra a Chantagem Atômica" (1965).


Envolvida romanticamente por três anos com o milionário italiano Gianni Agnelli, dono da Fiat e seu grande amor, com quem sempre desejou ter um filho sem conseguir, ela, hoje afastada do cinema, vive há muito anos numa vila ao sul de Roma, tendo voltado poucas vezes à sua Suécia natal.


Filmes

Nain rouge, Le (1998)
Bámbola (1996)
Signora della città, La (1996)
Ambrogio (1992)
Cattive ragazze (1992)
Conte Max, Il (1991)
Intervista (1987)
Dolce pelle di Angela (1986)
Cicciabomba (1982)
S+H+E: Security Hazards Expert (1980)
Gold of the Amazon Women (1979)
Suor Omicidi (1978)
Anno Schmidt (1974)
Casa d'appuntamento (1972)
Northeast of Seoul (1972) .... Katherine
Lunga cavalcata della vendetta, La (1972)
I clowns - Os Palhaços (TV) (1970)
Debito coniugale, Il (1970)
Divorzio, Il (1970)
Quella chiara notte d'ottobre (1970)
Blonde Köder für den Mörder (1969)
Malenka (1969)
If It's Tuesday, This Must Be Belgium (1969)
Sudario a la medida, Un (1969)
Crónica de un atraco (1968)
Way... Way out - Um Biruta em órbita (1968)
Woman Times Seven (1967)
Cobra, Il (1967)
Scusi, lei è favorevole o contrario? (1967)
Sfinge d'oro, La (1967)
Das Gewisse Etwas der Frauen (1966)
Way... Way Out (1966)
Das Liebeskarussell (1965)
The Alphabet Murders (1965)
Bianco, rosso, giallo, rosa (1964)
4 for Texas (1963)
Call Me Bwana (1963)
Boccacio'70 (1962)
Mongoli, I (1961)
A porte chiuse (1961)
Anonima cocottes (1960)
Tre eccetera del colonnello, Le (1960)
Apocalisse sul fiume giallo (1960)
Dolce vita, La - A doce vida  (1960)
Nel segno di Roma (1959)
The Man Inside (1958)
Screaming Mimi (1958)
Paris Holiday (1958)
Valerie (1957)
Interpol (1957)
Zarak (1956)
Man in the Vault (1956)
Hollywood or Bust - Ou vai ou racha (1956)
Back from Eternity (1956)
War and Peace - Guerra e Paz (1956)
Artists and Models (1955)
Blood Alley (1955)
The Golden Blade (1953)
Abbott and Costello Go to Mars (1953)
The Mississippi Gambler - O aventureiro do Mississipi (1953)

Fontes: Wikipedia; Cinema Clássico.

Os olhos que comiam Carne

Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernandes esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto.

Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto.

E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a janela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou.

Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.

- Entra, Roberto.

O criado empurrou a porta, e entrou.

- Esta lâmpada está queimada, Roberto? - indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.

- Não, senhor. Está até acesa..

- Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? - exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.

- Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta.

- A janela está aberta, Roberto? - gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.

- Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.

Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.

A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o  professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos.

A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires.

Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.

Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem.

Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa de novas reflexões.

Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente:

- Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. .

O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu.

O processo Plateu era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecida integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.

Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas.

Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre.

Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura.

Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.

Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino.

- Abra os olhos! - diz o doutor.

O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro!

De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.

- Afastem-se ! Afastem-se - intima, num urro que faz estremecer a sala toda.

E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos ensangüentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos...


por Humberto de Campos

Humberto de Campos (H. de C. Veras), jornalista, político, crítico, cronista, contista, poeta, biógrafo e memorialista, nasceu em Miritiba, hoje Humberto de Campos, MA, em 25 de outubro de 1886, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de dezembro de 1934. Eleito em 30 de outubro de 1919 para a Cadeira n. 20, sucedendo a Emílio de Menezes, foi recebido em 8 de maio de 1920, pelo acadêmico Luís Murat.

Foram seus pais Joaquim Gomes de Faria Veras, pequeno comerciante, e Ana de Campos Veras. Perdendo o pai aos seis anos, Humberto de Campos deixou a cidade natal e foi levado para São Luís. Dali, aos 17 anos, passou a residir no Pará, onde conseguiu um lugar de colaborador e redator na Folha do Norte e, pouco depois, na Província do Pará. Em 1910 publicou seu primeiro livro, a coletânea de versos intitulada Poeira, primeira série. Em 1912 transferiu-se para o Rio. Entrou para O Imparcial, na fase em que ali trabalhava um grupo de escritores ilustres, como redatores ou colaboradores, entre os quais Goulart de Andrade, Rui Barbosa, José Veríssimo, Júlia Lopes de Almeida, Salvador de Mendonça e Vicente de Carvalho. João Ribeiro era o crítico literário. Ali também José Eduardo de Macedo Soares renovava a agitação da segunda campanha civilista. Humberto de Campos ingressou no movimento. Logo depois o jornalista militante deu lugar ao intelectual. Fez essa transição com o pseudônimo de Conselheiro XX com que assinava contos e crônicas, hoje reunidos em vários volumes. Assinava também com os pseudônimos Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios. Em 1923, substituiu Múcio Leão na coluna de crítica do Correio da Manhã.

Em 1920, já acadêmico, foi eleito deputado federal pelo Maranhão. A revolução de 1930 dissolveu o Congresso e ele perdeu seu mandato. O presidente Getúlio Vargas, que era grande admirador do talento de Humberto de Campos, procurou minorar as dificuldades do autor de Poeira, dando-lhe os lugares de inspetor de ensino e de diretor da Casa de Rui Barbosa. Em 1931, viajou ao Prata em missão cultural. Em 1933 publicou o livro que se tornou o mais célebre de sua obra, Memórias, crônica dos começos de sua vida. O seu Diário secreto, de publicação póstuma, provocou grande escândalo pela irreverência e malícia em relação a contemporâneos.

Autodidata, grande ledor, acumulou vasta erudição, que usava nas crônicas. Poeta neoparnasiano, fez parte do grupo da fase de transição anterior a 1922. Poeira é um dos últimos livros da escola parnasiana no Brasil. Fez também crítica literária de natureza impressionista. É uma crítica de afirmações pessoais, que não se fundamentam em critérios e, por isso, não podem ser endossadas nem verificadas. Na crônica, seu recurso mais corrente era tomar conhecidas narrativas e dar-lhes uma forma nova, fazendo comentários e digressões sobre o assunto, citando anedotas e tecendo comparações com outras obras. No fundo ou na essência, era uma crítica superficial, que não resiste à análise nem ao tempo.

Obras: Poeira, poesia, 2 séries (1910 e 1917); Da seara de Booz, crônicas (1918); Vale de Josaphat, contos (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); Mealheiro de Agripa, vária (1921); Carvalhos e roseiras, crítica (1923); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); Grãos de mostarda, contos (1926); Alcova e salão, contos (1927); O Brasil anedótico, anedotas (1927); Antologia da Academia Brasileira de Letras (1928); O monstro e outros contos (1932); Memórias 1886-1900 (1933); Crítica, 4 séries (1933, 1935, 1936); Os países, vária (1933); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934); Sombras que sofrem, crônicas (1934); Um sonho de pobre, memórias (1935); Destinos, vária (1935); Lagartas e libélulas, vária (1935); Memórias inacabadas (1935); Notas de um diarista, 2 séries (1935 e 1936); Reminiscências, memórias (1935); Sepultando os meus mortos, memórias (1935); Últimas crônicas (1936); Perfis, 2 séries, biografias (1936); Contrastes, vária (1936); O arco de Esopo, contos (1943); A funda de Davi, contos (1943); Gansos do capitólio, contos (1943); Fatos e feitos, vária (1949); Diário secreto, 2 vols. (1954).

Fonte: Academia Brasileira de Letras

Horace Walpole

Dois fatos justificam a presença de Walpole na história da literatura inglesa: sua correspondência volumosa, que se tornou um clássico do gênero, e o livro The Castle of Otranto, que deu início à voga dos romances góticos, ou com temas de horror ambientados, a princípio, em tempos medievais.

Horace Walpole, filho do primeiro-ministro Robert Walpole e quarto conde de Orford, nasceu em Londres em 24 de setembro de 1717. Foi educado em Eton e Cambridge. Com o poeta Thomas Gray, viajou pela Itália e a França.

De 1741 a 1768 foi membro do Parlamento, mas não se destacou na vida política. A partir de 1747, fez de Strawberry Hill, sua residência em Twickenham, onde colecionou obras de arte, um ativo centro da revivescência gótica inglesa. Aí instalou também uma impressora, em que imprimiu seus escritos e os dos amigos mais íntimos.

Além de The Castle of Otranto (1765; O castelo de Otranto), escreveu livros sobre história política e sobre história da arte. Sua correspondência completa, com mais de três mil cartas, foi publicada em 42 volumes entre 1937 e 1980.

Horace Walpole morreu em Londres, em 2 de março de 1797.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

O Tesouro

I

Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guanes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados.

Nos Paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro.

Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir à estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura. E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.

Ora, na primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos três na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas pastavam a relva nova de abril, - os irmãos de Medranhos encontravam, por trás de uma moita de espinheiros, numa cova de rocha, um velho cofre de ferro. Como se o resguardasse uma torre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro!

No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosamente as mãos no ouro, estalaram a rir, num riso de tão larga rajada, que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam... E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal apalpavam nos cintos os cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o tesouro, ou viesse de Deus ou do demônio, pertencia aos três, e entre eles se repartiria, rigidamente, pesando-se o ouro em balanças. Mas como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tão cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso ele entendia que o mano Guanes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já ouro na bolsinha, a comprar três alforjes de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne, e três botelhas de vinho. Vinho e carne eram para eles, que não comiam desde a véspera; a cevada era para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacaríam o ouro nos alforjes, e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem lua.

- Bem tramado! - gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de longa guedelha, e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até a fivela do cinturão.

Mas Guanes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente:

- Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave!

- Também eu quero a minha, mil raios! - rugiu logo Rostabal.

Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua fechadura com força. Imediatamente Guanes, desanuviado, saltou na égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga costumada e dolente:

Olé! olé!
Sale la cruz de la iglesia,
Vestida de negro luto...

II

Na clareira, em frente à moita que encobria o tesouro (e que os três tinham desbastado a cutiladas) um fio de água, brotando entre rochas, caía sobre uma vasta laje escavada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um velho pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas tosavam a boa erva pintalgada de papoulas e botões de ouro. Pela ramaria andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o sol, bocejava com fome.

Então Rui, que tirara o sombrero e lhe cofiava as velhas plumas roxas, começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guanes, nessa manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte ruim! Pois que se Guanes tivesse quedado em Medranhos, só eles dois teriam descoberto o cofre, e só entre eles dois se dividiria o ouro! Grande pena! tanto mais que a parte de Guanes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, pelas tavernas.

- Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guanes, passando aqui sozinho, tivesse achado este ouro, não dividia conosco, Rostabal!

O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras:

- Não, mil raios! Guanes é sôfrego... Quando o ano passado, se te lembras, ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três para eu comprar um gibão novo!

- Vês tu? - gritou Rui, resplandecendo.

Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma idéia, que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam.

- E para que? - prosseguia Rui. - Para que lhe serve todo o ouro que nos leva? Tu não o ouves, de noite, como tosse? Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até as outras neves, Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres, e o teu terço de solarengos como compete, a quem é, como tu, o mais velho dos de Medranhos...

- Pois que morra, e mora hoje! - bradou Rostabal.

- Queres?

Vivamente, Rui agarrara o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos, por onde Guanes partira cantando:

- Logo adiante, ao fim do trilho, hé um sítio bom, nos silvados. E hás de ser tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. E é a justiça de Deus que sejas tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem pudor, Guanes te tratava de cerdo e de torpe, por não saberes a letra nem os números.

- Malvado!

- Vem!

Foram. Ambos se emboscaram por trás de um silvado, que dominava o atalho, estreito e pedregoso como um leito de torrente. Rostabal, assolapado na vala, tinha já a espada nua. Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos - e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba, calculava as horas pelo sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de corvos passou sobre eles, grasnando. E Rostabal, que lhe seguira o vôo, recomeçou a bocejar, com fome, pensando nos empadões e na vinho que o outro trazia nos alforjes.

Enfim! Alerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos:

Olé! olé!
Sale la cruz de la iglesia
Toda vestida de negro...

Rui murmurou: - "Na ilharga! Mal que passe!" O chuto da égua bateu o cascalho, uma pluma num sombrero vermelhejou por sobre a ponta das silvas.

Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa espada; - e toda a lâmina se embebeu molemente na ilharga de Guanes, quando ao rumor, bruscamente, ele se virara na sela. Com um surdo arranco, tombou de lado, sobre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua: - Rostabal, caindo sobre Guanes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a espada, agarrada pela folha como um punhal, no peito e na garganta.

- A chave! - gritou Rui.

E arrancada a chave do cofre ao seio do morto, ambos largaram pela vereda - Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arrepiado com o sabor de sangue que lhe espirrara para a boca; Rui, atrás, puxando desesperadamente os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando a longa dentuça amarelada, não queria deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes.

Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada: - e foi correndo sobre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um mouro, que desembocou na clareira onde o sol já não dourava as folhas. Rostabal arremessara para a relva o sombrero e a espada; e debruçado sobre a laje escavada em tanque, de mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e as barbas.

A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregada com os alforjes novos que Guanes comprara em Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois gargalos de garrafas. Então Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga navalha. Sem um rumor na relva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolgava, com as longas barbas pingando. E serenamente, como se pregasse uma estaca num canteiro, enterrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o coração.

Rostabal caiu sobre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos cabelos flutuando na água. A sua velha escarcela de couro ficara entalada sob a coxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre, Rui solevou o corpo - e um sangue mais grosso jorrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando.

III

Agora eram dele, só dele, as três chaves do cofre!... E Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o ouro metido nos alforjes, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos e enterraria na adega o seu tesouro! E quando ali na fonte, e além rente aos silvados, só restassem, sob as neves de dezembro, alguns ossos sem nome, ele seria o magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido, mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos... Mortos, como? Como devem morrer os de Medranhos - a pelejar contra o Turco!

Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado de dobrões, que fez retinir sobre as pedras. Que puro ouro, de fino quilate! E era o seu ouro! Depois foi examinar a capacidade dos alforjes - e encontrando as duas garrafas de vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera uma lasca de peixe seco. E há quanto tempo não provava capão!

Com que delícia se sentou na relva, com as pernas abertas, e entre elas, a ave loura, que recendia, e o vinho cor de âmbar! Ah! Guanes fora bom mordomo - nem esquecera azeitonas. Mas, porque trouxera ele, para três convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes dentadas. A tarde descia, pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa. Para além, na vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto.

Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela cor velha e quente, não teria custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à boca, bebeu em sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bendito, que tão prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia - destapou outra. Mas, como era avisado, não bebeu, porque a jornada para a serra, com o tesouro, requeria firmeza e acerto. Estendido sobre o cotovelo, descansando, pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres.

De repente, tomado de uma ansiedade, teve pressa de carregar os alforjes. Já entre os troncos a sombra se adensava. Puxou uma das éguas para junto do cofre, ergueu a tampa, tomou um punhado de ouro... Mas oscilou, largando os dobrões que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao peito. Que é, D. Rui? Raios de Deus! Era um lume, um lume vivo, que lhe acendera dentro, lhe subia até às goelas. Já rasgara o gibão, atirava os passos incertos, e, a arquejar, com a língua pendente, limpava as grossas bagas de um suor horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, o roía! Gritou:

- Socorro! Alguém! Guanes! Rostabal!

Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro galgava - sentia os ossos a estalarem como as traves de uma casa em fogo.

Cambaleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sobre Rostabal; e foi com o joelho fincado no morto, arranhando a rocha, que ele, entre uivos, procurava o fio de água, que recebia sobre os olhos, pelos cabelos. Mas a água mais o queimava, como se fosse um metal derretido. Recuou, caiu para cima da relva que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu, com uma baba densa a escorrer-lhe nas barbas; e de repente, esbugalhando pavorosamente os olhos, berrou, como se compreendesse enfim a traição, todo horror:

- É veneno!

Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guanes, apenas chegara a Retortilho, mesmo antes de comprar os alforjes, correra cantando a uma viela, por de trás da catedral, a comprar ao velho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo tesouro.

Anoiteceu. Dois corvos dentre o bando que grasnava, além nos silvados, já tinham pousado sobre o corpo de Guanes. A fonte, cantando, lavava o outro morto. Meio enterrada na erva negra, toda a face de Rui se tornara negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu.

O tesouro ainda lá está, na mata de Roquelanes.

Memórias de uma Forca

Foi por um modo sobrenatural que eu tive conhecimento deste papel, onde uma pobre forca apodrecida e negra dizia alguma coisa da sua história. Esta forca intentava escrever as suas trágicas Memórias. Deviam ser profundos documentos sobre a vida.

Árvore, ninguém sabia tão bem o mistério da natureza; forca, ninguém conhecia melhor o homem. Nenhum tão espontâneo e verdadeiro como o homem que se torce na ponta de uma corda — a não ser aquele que lhe carrega sobre os ombros! Infelizmente, a pobre forca apodreceu e morreu.

Entre os apontamentos que deixou, os menos completos são estes que copio — resumo das suas dores, vaga aparência de gritos instintivos. Pudesse ela ter escrito a sua vida complexa, cheia de sangue e de melancolia! É tempo de sabermos, enfim, qual é a opinião que a vasta natureza, montes, árvores e águas, fazem do homem imperceptível. Talvez este sentimento me leve ainda algum dia a publicar papéis que guardo avaramente, e que são as Memórias de um Átomo e os Apontamentos de Viagem de Uma Raiz de Cipreste.

Diz assim o fragmento que eu copio — e que é simplesmente o prólogo das Memórias:

“Sou duma antiga família de carvalhos, raça austera e forte — que já na Antiguidade deixava cair, dos seus ramos, pensamentos para Platão. Era uma família hospitaleira e histórica: dela tinham saído navios para a derrota tenebrosa das índias, contos de lanças para os alucinados das Cruzadas, e vigas para os tectos simples e perfumados que abrigaram Savonarola, Espinosa e Lutero. Meu pai, esquecido das altas tradições sonoras e da sua heráldica vegetal, teve uma vida inerte, material e profana. Não respeitava as nobres morais antigas, nem a ideal tradição religiosa, nem os deveres da história. Era uma árvore materialista. Tinha sido pervertida pelos enciclopedistas da vegetação. Não tinha fé, nem alma, nem Deus! Tinha a religião do Sol, da seiva e da água. Era o grande libertino da floresta pensativa. No Verão, enquanto sentia a fermentação violenta das seivas, cantava movendo-se ao sol, acolhia os grandes concertos de pássaros boémios, cuspia a chuva sobre o povo curvado e humilde das ervas e das plantas e, de noite, enlaçado pelas heras lascivas, ressonava sob o silêncio sideral. Quando vinha o Inverno, com a passividade animal dum mendigo, erguia, para a impassível ironia do azul, os seus braços magros e suplicantes!

“Por isso nós os seus filhos, não fomos felizes na vida vegetal. Um dos meus irmãos foi levado para ser tablado de palhaços: ramo contemplativo e romântico, ia, todas as noites, ser pisado pela chufa, pelo escárnio, pela farsa e pela fome! O outro ramo, cheio de vida, de sol, de poeira, áspero solitário da vida, lutador dos ventos e das neves, forte e trabalhador, foi arrancado dentre nós, para ir ser tábua de esquife! — Eu, o mais lastimável, vim a ser forca!

“Desde pequeno fui triste e compassivo. Tinha grandes intimidades na floresta. Eu só queria o bem, o riso, a dilatação salutar das fibras e das almas. O orvalho de que a noite me banhava, atirava-o a umas pobres violetas, que viviam por debaixo de nós, doces raparigas lutuosas, melancolias condensadas e vivas da grande alma silenciosa da vegetação. Agasalhava todos os pássaros na véspera dos temporais. Era eu quem asilava a chuva. Ela vinha, com os cabelos esguedelhados, perseguida, mordida, retalhada pelo vento! Eu abria-lhe as ramagens e as folhas, e escondia-a ali, ao calor da seiva. O vento passava, confundido e imbecil. Então a pobre chuva, que o via longe, assobiando lascivo, deixava-se escorregar silenciosamente pelo tronco, gota por gota, para o vento a não perceber; e ia, de rastos, por entre a erva, acolher-se à vasta mãe Água! Tive por esse tempo uma amizade com um rouxinol, que vinha conversar comigo durante as longas horas consteladas do silêncio. O pobre rouxinol tinha uma pena de amor! Tinha vivido num país distante, onde os noivados têm mais moles preguiças: lá se enamorara: comigo chorava em suspiros líricos. E tão mística pena era que me disseram que o triste, de dor e de desesperança, se deixara cair na água! Pobre rouxinol! Ninguém tão amante, tão viúvo e tão casto!

“Eu queria proteger todos os que vivem. E quando as raparigas do campo vinham para junto de mim chorar, eu erguia sempre as minhas ramagens, como dedos, para apontar à pobre alma aflita de lágrimas todos os caminhos do Céu!

''Nunca mais! Nunca mais, verde mocidade distante!

“Enfim, eu tinha de entrar na vida da realidade. Um dia, um daqueles homens metálicos que fazem o tráfico da vegetação, veio arrancar-me à árvore. Não sabia eu o que me queriam. Deitaram-me sobre um carro e, ao cair da noite, os bois começaram a caminhar, enquanto ao lado um homem cantava no silêncio da noite. Eu ia ferido e desfalecido. Via as estrelas com os seus olhares lancinantes e frios. Sentia-me separar da grande floresta. Ouvia o rumor gemente, indefinido e arrastado das árvores. Eram vozes amigas que me chamavam!

“Por cima de mim voavam aves imensas. Eu sentia-me desfalecer, num torpor vegetal, como se estivesse sendo dissipado na passividade das coisas. Adormeci. Ao amanhecer, íamos entrando numa cidade. As janelas olhavam-me com olhos ensanguentados e cheios dum sol irado. Eu só conhecia as cidades pelas histórias que delas contavam as andorinhas, nos serões sonoros da espessura. Mas como ia deitado e amarrado com cordas, apenas via os fumos e um ar opaco. Ouvia o rumor áspero e desafinado, onde havia soluços, risos, bocejos, e mais o surdo roçar da lama, e o tinido sombrio dos metais. Eu sentia enfim o cheiro mortal do homem! Fui arremessado para um pátio infecto, onde não havia o azul e o ar. Comecei então a compreender que uma grande imundície cobre a alma do homem, porque ele se esconde tanto das vistas do Sol!

“Uns homens vieram, que me deram desprezivelmente com os pés. Eu estava num estado de torpor e de materialidade, que nem sentia as saudades da pátria vegetal. Ao outro dia, um homem veio para mim e deu-me golpes de machado. Não senti mais nada. Quando voltei a mim, ia outra vez amarrado no carro, e pela noite um homem aguilhoava os bois, cantando. Senti lentamente renascer a consciência e a vitalidade. Parecia-me que eu estava transformado numa outra vida orgânica. Não sentia a magnética fermentação da seiva, a energia vital dos filamentos e a superfície viva das cascas. Em redor do carro iam outros homens, a pé. Sob a brancura silenciosa e compassiva da Lua, tive uma saudade infinita dos campos, do cheiro dos fenos, das aves, de toda a grande alma vivificadora de Deus, que se move entre a ramagem. Eu sentia que ia para uma vida real, de serviço e de trabalho. Mas qual? Tinha ouvido falar das árvores, que vão ser lenha, aquecem e criam, e, tomando entre a convivência do homem a nostalgia de Deus, lutam com os seus braços de chamas para se desprender da terra: essas dissipam-se na augusta transfiguração do fumo, vão ser nuvens, ter a intimidade das estrelas e do azul, viver na serenidade branca e altiva dos imortais, e sentir os passos de Deus!

“Eu tinha ouvido falar das que vão ser vigas da casa do homem: essas, felizes e privilegiadas, sentem na penumbra amorosa a doce força dos beijos e dos risos; são amadas, vestidas, lavadas; encostam-se a elas os corpos dolorosos dos Cristos, são os pedestais da paixão humana, têm a alegria imensa e orgulhosa dos que protegem; e risos das crianças, ais namorados, confidências, suspiros, elegias da voz, tudo o que lhes faz lembrar as murmurações da água, o estremecimento das folhas, as cantigas dos ventos — toda essa graça escorre sobre elas, que já gozaram a luz da matéria, como uma imensa e bondosa luz da alma.

“Eu tinha ouvido falar também das árvores de bom destino, que vão ser mastro de navio, sentir o cheiro da maresia e ouvir as legendas do temporal, viajar, lutar, viver, levadas pelas águas, através do infinito, entre surpresas radiosas — como almas arrancadas do corpo que fazem pela primeira vez a viagem do Céu!

“Que iria eu ser?... — Chegámos. Tive então a visão real do meu destino. Eu ia ser forca!

“Fiquei inerte, dissolvida na aflição. Ergueram-me. Deixaram-me só, tenebrosa, num campo. Tinha, enfim, entrado na realidade pungente da vida. O meu destino era matar. Os homens, cujas mãos andam sempre cheias de cadeias, de cordas e de pregos, tinham vindo aos carvalhos austeros buscar um cúmplice! Eu ia ser a eterna companheira das agonias. Presos a mim, iam balouçar-se os cadáveres, como outrora as verdes ramagens orvalhadas!

“Eu ia dar esses negros frutos: os mortos!

“O meu orvalho seria de sangue. Ia escutar para sempre, eu a companheira dos pássaros, doces tenores errantes, as agonias soluçantes, os gemidos de sufocação! As almas ao partir, rasgar-se-iam nos meus pregos. Eu, a árvore do silêncio e do mistério religioso, eu, cheia de augusta alegria orvalhada e dos salmos sonoros da vida, eu, que Deus conhecia por boa consoladora, havia de mostrar-me às nuvens, ao vento, aos meus antigos camaradas puros e justos, eu, a árvore viva dos montes, de intimidade com a podridão, de camaradagem com o carrasco, sustentando alegremente um cadáver pelo pescoço, para os corvos o esfarraparem!

“E isto ia ser! Fiquei hirta e impassível como nas nossas florestas os lobos, quando se sentem morrer.

“Era a aflição. Eu via ao longe a cidade coberta de névoa.

“Veio o sol. Em roda de mim começou a juntar-se o povo. Depois, através dum desfalecimento, senti o ruído de músicas tristes, o rumor pesado dos batalhões, e os cantos dolentes dos padres. Entre dois círios, vinha um homem lívido. Então, confusamente, como nas aparências inconscientes do sonho, senti um estremecimento, uma grande vibração eléctrica, depois a melodia monstruosa e arrastada do canto católico dos mortos!

“Voltou-me a consciência.

“Estava só. O povo dispersava-se e descia para os povoados. Ninguém! A voz dos padres descia lentamente, como a última água duma maré. Era o fim da tarde. Vi. Vi livremente. Vi! Dependurado de mim, hirto, esguio, com a cabeça caída e deslocada, estava o enforcado! Arrepiei-me!

“Eu sentia o frio e a lenta ascensão da podridão. Ia ficar ali, de noite, só, naquele descampado sinistro, tendo nos braços aquele cadáver! Ninguém!

“O sol ia-se, o sol puro. Onde estava a alma daquele cadáver? Tinha passado já? Tinha-se dissipado na luz, nos vapores, nas vibrações? Eu sentia os passos tristes da noite, que vinha. O vento empurrava o cadáver, a corda rangia.

“Eu tremia, numa febre vegetal, dilacerante e silenciosa. Não podia ficar ali só. O vento levar-me-ia, atirando-me, aos pedaços, para a antiga pátria das folhas. Não. O vento era brando: quase somente a respiração da sombra! Tinha vindo então o tempo em que a grande natureza, a natureza religiosa, era abandonada às feras humanas? Os carvalhos já não eram, pois, uma alma? Podiam, com justiça, vir o machado e as cordas buscar os ramos criados pela seiva, pela água e pelo sol, trabalho suado da natureza, forma resplandecente da intenção de Deus, e levá-los para as impiedades, para os tablados da forca onde apodrecem as almas, para os esquifes onde apodrecem os corpos? E as ramagens puras, que foram testemunhas das religiões, já não serviam senão para executar as penalidades humanas? Serviam só para sustentar as cordas, onde os saltimbancos bailam, e os condenados se torcem? Não podia ser.

“Pesava sobre a natureza uma fatalidade infame. As almas dos mortos, que sabem o segredo e compreendem a vegetação, achariam grotesco que as árvores, depois de terem sido colocadas por Deus na floresta com os braços estendidos, para abençoar a terra e a água, fossem arrastadas para as cidades, e obrigadas, pelo homem, a estender o braço da forca para abençoar os carrascos!

“E depois de sustentarem os ramos de verdura que são os fios misteriosos, mergulhados no azul, por onde Deus prende a terra —fossem sustentar as cordas da forca, que são as fitas infames, por onde o homem se prende à podridão! Não! se as raízes dos ciprestes contassem isto em casa dos mortos — faziam estalar de riso a sepultura!

“Assim falava eu na solidão. A noite vinha lenta e fatal. O cadáver balouçava-se ao vento. Comecei a sentir palpitações de asas. Voavam sombras por cima de mim. Eram os corvos. Pousaram. Eu sentia o roçar das suas penas imundas; afiavam os bicos no meu corpo; penduravam-se, ruidosos, cravando-me as garras.

“Um pousou no cadáver e pôs-se a roer-lhe a face! Solucei dentro de mim. Pedi a Deus que me apodrecesse subitamente. Era uma árvore das florestas a quem os ventos falavam! Servia agora para afiar os bicos dos corvos, e para que os homens dependurassem de mim os cadáveres, como vestidos velhos de carne, esfarrapados! Oh! meu Deus! — soluçava eu ainda — eu não quero ser relíquia de tortura: eu alimentava, não quero aniquilar: era a amiga do semeador, não quero ser a aliada do coveiro! Eu não posso e não sei ser a Justiça. A vegetação tem uma augusta ignorância: a ignorância do sol, do orvalho e dos astros. Os bons, os angélicos, os maus são os mesmos corpos invioláveis, para a grande natureza sublime e compassiva. Ó meu Deus, liberta-me deste mal humano tão aguçado e tão grande, que se traspassa a si, atravessa de lado a lado a natureza, e ainda te vai ferir, a ti, no Céu! Oh! Deus, o céu azul, todas as manhãs, me dava os orvalhos, o calor fecundo, a beleza imaterial e fluida da brancura, a transfiguração pela luz, toda a bondade, toda a graça, toda a saúde: — não queiras que, em compensação, eu lhe mostre, amanhã, ao seu primeiro olhar, este cadáver esfarrapado!

“Mas Deus dormia, entre os seus paraísos de luz. Vivi três anos nestas angústias.

“Enforquei um homem — um pensador, um político, filho do Bem e da Verdade, alma formosa cheia das formas do ideal, combatente da Luz. Foi vencido, foi enforcado.

“Enforquei um homem que tinha amado uma mulher e tinha fugido com ela. O seu crime era o amor, que Platão chama mistério, e Jesus chamou lei. O código puniu a fatalidade magnética da atracção das almas, e corrigiu Deus com a forca!

“Enforquei também um ladrão. Este homem era também operário. Tinha mulher, filhos, irmãos e mãe. No Inverno não teve trabalho, nem lume, nem pão. Tomado dum desespero nervoso, roubou. Foi enforcado ao Sol-posto. Os corvos não vieram. O corpo foi para a terra limpo, puro e são. Era um pobre corpo que tinha sucumbido por eu o apertar de mais, como a alma tinha sucumbido por Deus a alargar e a encher.

“Enforquei vinte. Os corvos conheciam-me. A natureza via a minha dor íntima; não me desprezou; o Sol alumiava-me com glorificação, as nuvens vinham arrastar por mim a sua mole nudez, o vento falava-me e contava a vida da floresta, que eu tinha deixado, a vegetação saudava-me com meigas inclinações da folhagem: Deus mandava-me o orvalho, frescura que prometia o perdão natural.

“Envelheci. Vieram as rugas escuras. A grande vegetação, que me sentia esfriar, mandou-me os seus vestidos de hera. Os corvos não voltaram: não voltaram os carrascos. Sentia em mim a antiga serenidade da natureza divina. As eflorescências, que tinham fugido de mim, deixando-me só no solo áspero, começaram a voltar, a nascer, em roda de mim, como amigas verdes e esperançosas. A natureza parecia consolar-me. Eu sentia chegar a podridão. Um dia de névoas e de ventos, deixei-me cair tristemente no chão, entre a relva e a humidade, e pus-me silenciosamente a morrer.

“Os musgos e as relvas cobriam-me, e eu comecei a sentir-me dissolver na matéria enorme, com uma doçura inefável.

“O corpo esfria-me: eu tenho a consciência da minha transformação lenta de podridão em terra. Vou, vou. Ó terra, adeus! Eu derramo-me já pelas raízes. Os átomos fogem para toda a vasta natureza, para a luz, para a verdura. Mal ouço o rumor humano. Ó antiga Cíbele, eu vou escorrer na circulação material do teu corpo! Vejo ainda indistintamente a aparência humana, como uma confusão de ideias, de desejos, de desalentos, entre os quais passam, diafanamente, bailando, cadáveres! Mal te vejo, ó mal humano! No meio da vasta felicidade difusa do azul, tu és, apenas, como um fio de sangue! As eflorescências, como vidas esfomeadas, começam a pastar-me! Não é verdade que ainda lá em baixo, no poente, os abutres fazem o inventário do corpo humano? ó matéria, absorve-me! Adeus! para nunca mais, terra infame e augusta! Eu vejo já os astros correrem como lágrimas pela face do céu. Quem chora assim? Eu sinto-me desfeita na vida formidável da terra! ó mundo escuro, de lama e de ouro, que és um astro no infinito — adeus! adeus! — deixo-te herdeiro da minha corda podre!”

Gazeta de Portugal, 23 de Dezembro de 1867

por Eça de Queiroz
Prosas Bárbaras, 1903

A Aia

Era uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino abundante em cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes, deixando solitária e triste a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu berço, dentro das suas faixas.

A lua cheia que o vira marchar, levado no seu sonho e conquista e de fama, começava a minguar - quando um dos seus cavaleiros apareceu, com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos, trazendo a amarga nova de uma batalha perdida e da morte do rei, traspassado por sete lanças entre a flor da sua nobreza, à beira de um grande rio.

A rainha chorou magnificamente o rei. Chorou ainda desoladamente o esposo, que era famoso e alegre. Mas, sobretudo, chorou ansiosamente o pai que assim deixava o filhinho desamparado, no meio de tantos inimigos da sua frágil vida e do reino que seria seu, sem um braço que o defendesse, forte pela força e forte pelo amor.

Desses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo do rei, homem depravado e bravio, consumido de cobiças grosseiras, desejando só a realeza por causa dos seus tesouros, e que havia anos vivia num castelo sobre os montes, com uma horda de rebeldes, à maneira de um lobo que, de atalaia no seu fojo, espera a presa. Ai! a presa agora era aquela criancinha, rei de mama, senhor de tantas províncias, e que dormia no seu berço com seu guizo de ouro fechado na mão!

Ao lado dele, outro menino dormia noutro berço. Mas este era um escravozinho, filho da bela e robusta escrava que amamentava o príncipe. Ambos tinham nascido na mesma noite de verão. O mesmo seio os criava. Quando a rainha, antes de adormecer, vinha beijar o principezinho, que tinha cabelo louro e fino, beijava também por amor dele o escravozinho, que tinha o cabelo negro e crespo. Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas. Somente, o berço de um era magnífico e de marfim entre brocados - e o berço do outro pobre e de verga. A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, por que se um era o seu filho - o outro o seu rei.

Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião dos seus senhores. Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto à beira do grande rio. Pertencia, porém, a uma raça que acredita que a vida da terra se continua no céu. O rei seu amo, decerto, já estaria agora reinando num outro reino, para além das nuvens, abundante também em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinha subido com ele às alturas. Os seus vassalos que fossem morrendo, prontamente iriam, nesse reino celeste, retornar em torno dele a sua vassalagem. E ela um dia, por seu turno, remontaria num raio de luz a habitar o palácio do seu senhor, e a fiar de novo o linho das suas túnicas, e a acender de novo a caçoleta dos seus perfumes; seria no céu como fora na terra, e feliz na sua servidão.

Todavia, também ele tremia pelo seu pricipezinho! Quantas vezes, com ele pendurado do peito, pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que correriam antes que ele fosse ao menos do tamanho de uma espada, e naquele tio cruel , de face mais escura que a noite e coração mais escuro que a face, faminto do trono, e espreitando de cima do seu rochedo entre os alfanjes da sua horda! Pobre principezinho da sua alma! Com uma ternura maior o apertava então nos braços. Mas se o seu filho chalrava ao lado - era para ele que seus braços corriam um ardor mais feliz. Esse, na sua indigência, nada tinha a recear da vida. Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar mais despido das glórias e bens do mundo do que já estava ali no seu berço, sob o pedaço de linho branco que resguardava a sua nudez. A existência, na verdade, era para ele mais preciosa e digna de ser conservada que a do seu príncipe, porque nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo. E, como se o amasse mais por aquela humilde ditosa, cobria o seu corpinho gordo de beijos pesados e devoradores - dos beijos que ela fazia ligeiros sobre as mãos do seu príncipe.

No entanto um grande temor enchia o palácio, onde agora reinava uma mulher entre as mulheres. O bastardo, o homem de rapina, que errava no cimo das serras, descera à planície com a sua horda, e já através de casais e aldeias felizes ia deixando um sulco de matança e ruínas. As portas da cidade tinham sido seguras com cadeias mais fortes. Nas atalaias ardiam lumes mais altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca não governa como uma espada. Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha. E a rainha desventurosa apenas sabia correr a cada instante ao berço de seu filhinho e chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva. Só a ama leal parecia segura - como se os braços em que estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma cidadela que nenhuma audácia pode transpor.

Ora, uma noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a adormecer, já despida, no seu catre, entre os seus dous meninos, adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada dos vergéis reais. Embrulhada à pressa num pano atirando os cabelos para trás, escutou ansiosamente. Na terra areada, entre os jasmineiros, corriam passos pesados e rudes. Depois houve um gemido, um corpo tombando molemente, sobre lajes, como um fardo. Descerrou violentamente a cortina. E além, ao fundo da galeria, avistou homens, um clarão de lanternas, brilhos de armas... Num relance tudo compreendeu - o palácio surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar o seu príncipe! Então, rapidamente, sem uma vacilação, uma dúvida, arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga - e tirando o seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço real que cobriu com um brocado.

Bruscamente um homem enorme, de face flamejante, com um manto negro sobe a cota de malha, surgiu à porta da câmara, entre outros, que erguiam lanternas. Olhou - correu ao berço de marfim onde os brocados luziam, arrancou a criança, como se arranca uma bolsa de ouro, e abafando os seus gritos no manto, abalou furiosamente.

O príncipe dormia no seu novo berço. A ama ficara imóvel no silêncio e na treva.

Mas brados de alarme atroaram de repente o palácio. Pelas janelas perpassou o longo flamejar das tochas. Os pátios ressoavam como bater das armas. E desgrenhada, quase nua, a rainha invadiu a câmara, entre as aias, gritando pelo seu filho! Ao avistar o berço de marfim, com as roupas desmanchadas, vazio, caíu sobre as lajes, num choro, despedaçada. Então calada, muito lenta, muito pálida, a ama descobriu o pobre berço de verga... O príncipe lá estava, quieto, adormecido, num sonho que o fazia sorrir, lhe iluminava toda a face entre os cabelos de ouro. A mãe caiu sobre o berço, com um suspiro, como cai um corpo morto.

E nesse instante um novo clamor abalou a galeria de mármore. Era o capitão das guardas, a sua gente fiel. Nos seus clamores havia, porém, mais tristeza que triunfo. O bastardo morrera! Colhido, ao fugir, entre o palácio e a cidadela, esmagado pela forte legião de arqueiros, sucumbira, ele e vinte da sua horda. O seu corpo lá ficara, com flechas no flanco, numa poça de sangue. Mas, ai! dor sem nome! O corpozinho tenro do príncipe lá ficara também, envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado!... Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas - quando a rainha, deslumbrada, com lágrimas entre risos, ergueu nos braços, para lho mostrar, o príncipe que despertara.

Foi um espanto, uma aclamação. Quem o salvara? Quem?... Lá estava junto do berço de marfim vazio, muda e hirta, aquela que o salvara! Serva sublimemente leal! Fora ela que, para conservar a vida ao seu príncipe, mandara à morte o seu filho... Então, só então, a mãe ditosa, emergindo da sua alegria extática, abraçou apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e lhe chamou irmã do seu coração... E dentre aquela multidão que se apertava na galeria veio uma nova, ardente aclamação, com súplicas de que fosse recompensada, magnificamente, a serva admirável que salvara o rei e o reino.

Mas como? Que bolsas de ouro podem pagar um filho? Então um velho de casta nobre lembrou que ela fosse levada ao tesouro real, e escolhesse dentre essas riquezas, que eram como as maiores dos maiores tesouros da índia, todas as que o seu desejo apetecesse...

A rainha tomou a mão da serva. E sem que a sua face de mármore perdesse rigidez, com um andar de morta, como num sonho, ela foi assim conduzida para a Câmara dos Tesouros. Senhores, aias, homens de armas, seguiam num respeito tão comovido que apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lajes. As espessas portas do Tesouro rodaram lentamente. E, quando um servo destrancou as janelas, a luz da madrugada, já clara e rósea, entrando pelos gradeamentos de ferro, acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio de ouro e pedrarias! Do chão de rocha até às sombrias abóbadas, por toda a câmara, reluziam, cintilavam refulgiam os escudos de ouro, as armas marchetadas, os montões de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas, todas as riquezas daquele reino, acumuladas por cem reis durante vinte séculos. Um longo ah, lento e maravilhado, passou por sobre a turba que emudecera. Depois houve um silêncio, ansioso. E no meio da câmara, envolta na refulgência preciosa, a ama não se movia... Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de ouro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o seu peito!... Então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar, aquele lento mover da sua mão aberta. Que jóia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis, ia ela escolher?

A ama estendia a mão - e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.

Agarrara o punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios do sol, encarou a rainha, a multidão, e gritou:

- Salvei o meu príncipe, e agora - vou dar de mamar ao meu filho!

E cravou o punhal no coração.