quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O guarda-chuva no Municipal

 Cada época tem suas palavras encantadas. No tempo de Dumas velho, era "cáspite". Ninguém sabe, até hoje, o que se esconde por trás de "cáspite". Anos atrás, o poeta Murilo Mendes foi ao Municipal. Não me lembro se era ópera ou companhia francesa.

No primeiro intervalo, lá foi ele para o corredor, fumar o seu cigarrinho. E, súbito, começa a ouvir uma série de vozes. Não vozes das grã-finas que cacarejavam nas imediações. Não.

Era uma única voz, absurda, fantástica, que repetia, junto ao seu ouvido, a mesma palavra: — "Cáspite! Cáspite!".

Demais a mais, não parecia um som terreno. Não era a primeira vez que um poeta tinha delírios auditivos como uma Joana D'Arc. Aqui abro parêntese, para referir um episódio que consta da história e lenda de Murilo Mendes.

Não sei em que dia ou ano, nem importa a data. Era o mesmo Municipal e estava levando uma peça francesa (alguém diria, mais tarde, e textualmente, que era uma peça "chatérrima"). Lá foi o nosso Murilo para uma das primeiras filas. Olhou em torno e viu uma fauna impressionante de casacas e decotes. E cada decote ou casaca humilhava e agredia o seu traje de passeio, surrado e sebento. Muito bem: — e, no fim dos primeiros cinco minutos, o poeta achava o texto irrespirável.

Não teve mais dúvidas. Abriu um guarda-chuva na platéia. Na frisa, o embaixador francês, de monóculo, já não entendia mais nada. O elenco, no palco, esbugalhou-se. Por um momento, não se ouviu aquela pronúncia perfeita, irretocável dos artistas de França.

Era uma experiência inédita aquele guarda-chuva solitário e sobrenatural. E não havia sequer uma goteira que o justificasse. Por outro lado, nenhum regulamento de teatro prevê a hipótese de um guarda-chuva.

Que fazer diante de um fato novo, revolucionário e alucinatório?

Houve uns dois ou três minutos de um suspense geral e pânico. E, súbito, aquelas casacas e aqueles decotes começaram a aplaudir. Primeiro, uma meia dúzia de palmas ainda envergonhadas e pioneiras. Depois, explodiu a unanimidade. Pela primeira vez, um guarda-chuva foi longamente ovacionado, como um tenor italiano.

Naquele tempo, o intelectual era louco (hoje, o próprio Murilo é apenas um funcionário corretíssimo, que faz do livro de ponto a sua bíblia).

Volto ao "cáspite". E, então, no corredor do Municipal, Murilo Mendes começa a repetir: — "Cáspite! Cáspite!".

Houve um fluxo e refluxo de casacas e decotes. Não satisfeito, ele cai, entorna-se no ladrilho, como um fuzilado. No ar ficou aquela palavra em flor: — "cáspite, cáspite". A queda do poeta impressionou menos do que o som apavorante. As senhoras perguntavam umas às outras: — "Por que cáspite?".

Era a pergunta que todos faziam sem lhe achar resposta. O fato é que a exumação de uma gíria velhíssima deflagrou todo um processo de terror coletivo.

Mas "cáspite" é, repito, do tempo do Dumas velho. Outra palavra que vem injetada de passado é "biltre". Se perguntarmos às novas gerações o que é "biltre", nem todos saberão responder. Mas reparem como o som é fascinante.

Ninguém chama mais ninguém de "biltre". Em nosso repertório de palavrões, falta este. E alguém que, em nosso tempo, fosse chamado de "biltre" não sentiria o ultraje fatal, a mácula indelével.

Todavia, há uma palavra que não passa, que não envelhece, uma palavra que mantém, através dos tempos, a sua eficácia mortífera. Ei-la: — "canalha".

Na minha confissão de ontem ou anteontem (já não me lembro mais), tratei do destino da inteligência. Sem nenhum dramatismo, e apenas com a maior isenção e objetividade, observei um fato patético do nosso tempo. Referi-me à "inteligência degradada".

Outro dia passou por mim pintor estimadíssimo. Alguém cochichou: — "Olha um canalha plástico!". E, de repente, vi tudo. Sim, do cinema, do teatro, da pintura, da poesia, do romance — sai todo um elenco de canalhas.

O leitor, perplexo, há de perguntar: — "Mas como e por quê?".

É preciso explicar: — são os artistas que, por motivos políticos, ideológicos, rolam de abjeção em abjeção. E assim desponta, como uma nova classe, a dos "canalhas da inteligência". Fiz a pura constatação e citei dois exemplos: — o poeta Éluard, que se recusou a assinar um pedido de clemência para um outro poeta, condenado à morte. E o poeta foi enforcado. Outro exemplo: — de Sartre, que, depois do extermínio de Pasternak, dizia: — "Um escritor que não é lido em sua própria língua".

Não era lido porque a polícia russa não deixava. E Sartre achava corretíssimo o assassinato de um maravilhoso artista.

Eu poderia ir buscar, na Cortina de Ferro, centenas de exemplos. E é óbvio que a inteligência passa, em nossa época, por um processo de desumanização. Ninguém era mais humano do que o poeta, o romancista, o pintor, o escultor. O artista era o seu povo. E, hoje, nós vemos o nosso intelectual dando vivas a Cuba, outros que se esgoelam pelo Vietnã.

Populações inteiras do Brasil apodrecem na fome. E, aqui, não damos um passo sem tropeçar num vietcong da inteligência brasileira. Dane-se a nossa mortalidade infantil!

Artistas plásticos, poetas, romancistas escrevem "muerte" em seus cartazes. Traem sua língua. Traem seu povo. Sim, podemos falar numa inteligência desumana, tão pouco brasileira e de uma abjeta alienação.

Fiz toda a meditação acima pensando em Oduvaldo Viana Filho. Se vocês não o conhecem, é pena. Eu disse Oduvaldo Viana Filho e já retifico: — o Vianinha. Sua estrutura doce exige o diminutivo. Dos nossos artistas, é o menos sombrio, o menos neurótico, o menos ressentido. O nosso teatro está cheio de víboras. Pois o Vianinha é a antivíbora.

Feito este lírico retrato de lambe-lambe, passo aos fatos.

Ontem, eu o encontrei no gabinete de Beatriz Veiga, diretora do Teatro Nacional de Comédia. O Vianinha ia atrás de umas bambolinas para a estréia de Cordélia. E, pela primeira vez, eu o vi sem a luminosidade do otimista. Sim, o dramaturgo estava a meio-pau, exalando uma cava depressão. Ao ver-me, chamou-me de "senhor". (E, então, senti que se cavara entre mim e ele o abismo de várias gerações).

Simplesmente, o Vianinha está numa torva desilusão do teatro. Parece que suas últimas tentativas teatrais não foram bem-sucedidas. E o Vianinha, em conversa comigo, falou em largar o teatro. Quer ser outra coisa. Deprimido, chegava ao patético, raiando pelo sublime.

Quando falou em largar o teatro, tive ímpetos de aplaudi-lo como na ópera: — "Bravos! Bravíssimo!". Quase, quase lhe disse: — "Seja vendedor de chicabon, de laranja, de cachorro-quente ou de grapete. Mas não seja poeta, não seja artista, não seja intelectual".

O que importa é não ser nem Sartre, nem Éluard.

[24/4/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

O Glorioso na seleção

Joel, Manga, Nilton Santos, Zé Maria, Ayrton e Rildo; Garrincha, Arlindo, Quarentinha, Amarildo e Zagalo
Botafogo (1960 - 1964)

Na fase mais gloriosa do futebol brasileiro, o Santos de Pelé só tinha um adversário à altura: o Botafogo de Garrincha. E era um timaço! Tanto que foi a base da seleção bicampeã do mundo no Chile com cinco jogadores em campo: Nilton Santos, Didi, Amarildo e Zagalo, além do gênio das pernas tortas.

Craques que fizeram do Fogão o bicampeão carioca em 196l e 1962 e campeão do Torneio Rio-São Paulo nos anos de 1962 e 1964. No exterior, não era diferente. O time venceu torneios na Colômbia, México, França, Bolívia e Argentina.

Mas a história vitoriosa do esquadrão alvinegro começou com a firme determinação de torcedores históricos como o jornalista e técnico João Saldanha, para quem o Fogão precisava de grandes craques. Eles vieram e com eles as maiores glórias que o clube já conquistou. Quem, afinal, enfrentaria tranqüilo um time com Manga; Joel, Zé Maria, Nilton Santos e Rildo; Aírton e Didi; Garrincha, Quarentinha, Amarildo e Zagalo?

Tradição de craques

 Os gênios alvinegros mal haviam deixado os gramados e uma nova geração de craques já assumia seus postos para garantir ao Botafogo mais e mais glórias. No lugar de Nilton Santos, Didi e Garrincha, surgiram Gérson, Jairzinho e Paulo César Lima. Com eles o Fogão conquistou novamente o Rio-São Paulo (1966), o bicampeonato carioca (1967-1968) e a cobiçada Taça Brasil (1968). O time-base era Manga; Moreira, Zé Carlos, Leônidas, Valtencir, Carlos Roberto, Gérson, Rogério, Roberto Miranda, Jairzinho e Paulo César.

Fonte: Revista Placar.

O maior do mundo

Lima, Zito, Dalmo, Calvet, Gilmar e Mauro; Agachados Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe
Santos (1962 - 1963)

Eram onze camisas brancas vestindo onze corpos negros. Apesar de não ser uma verdade completa, a começar pelo goleiro Gilmar, assim corria pelo mundo a fama do maior esquadrão de todos os tempos.

Não houve títulos que aquele time de Pelé não conquistasse: bicampeão mundial, bicampeão da Libertadores da América, pentacampeão da Taça Brasil, oito campeonatos paulistas, três Rio-São Paulo. Sem falar dos 28 torneios ganhos em todos os cantos do planeta.

Mas o seu apogeu aconteceu em 1962 com a impressionante seqüência de títulos que o levaram ao bicampeonato mundial. Para isso, o time teve que vencer o Peñarol, no tira-teima realizado em Buenos Aires, e o Benfica, em Portugal.

Em 1963, os feitos heróicos se repetiram em cima do Boca Juniors, em pleno estádio de La Bombonera, e contra o poderoso Milan, dando ao Santos o bicampeonato mundial interclubes. A verdade é que nunca houve e muito dificilmente haverá um time como o Santos de Gilmar; Mauro e Calvet; Dalmo, Zito e Lima; Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe.

Gerações de ouro

Três gerações de craques gravitaram em torno do deus Pelé. A primeira venceu o campeonato paulista de 1958 com a insuperável marca de 143 gols. Jogavam Manga; Ramiro e Dalmo; Getúlio, Urubatão e Zito; Dorval, Jair, Pagão, Pelé e Pepe. Bem diferente, mas tão bom como o time que venceu o tricampeonato paulista em l969: Cláudio; Carlos Alberto Torres, Ramos Delgado, Djalma Dias e Rildo; Clodoaldo e Negreiros; Manuel Maria, Toninho Guerreiro, Pelé e Edu.


Fonte: Revista Placar.

O ataque com fome de gols

Em pé: Idário, Julião, Alan, Olavo, Roberto Belangero e Gylmar. Agachados: Cláudio, Luizinho, Paulo, Baltazar e Jansen.
Corinthians (1950 - 1955)

No início dos anos 50, o Corinthians levava seus torcedores ao êxtase com um esquadrão que tinha fome de gols. A sua linha de frente formada por Cláudio, Luisinho, Baltazar, Carbone e Mário entrou para a história ao ultrapassar a marca dos 100 gols num único campeonato.

Foram ao todo 103 tentos no Paulistão de 195l. Marcar gols, aliás, era a especialidade desse time que conquistou o bicampeonato paulista (1951/S2), e o título do IV Centenário da Cidade de São Paulo (1954), além de três torneios Rio-São Paulo (1950, 1953 e 1954).

Mas o grande feito da máquina corinthiana aconteceu longe da sua torcida, em 1953, quando sagrou-se campeão da Pequena Taça do Mundo, na Venezuela. Não perdeu, nem empatou. Venceu todos os jogos diante do Barcelona (Espanha), Roma (Itália) e da seleção local.

A festa ficou, então, marcada para o aeroporto de Congonhas, onde a torcida recepcionou os campeões. O time-base jogava com Gilmar (que revezava com Cabeção); Homero e Olavo; Idário, Goiano e Roberto Belangero; Cláudio. Luisinho, Baltazar, Carbone e Mário.

Vitórias democráticas

Mais do que a genialidade de Sócrates, Zenon e Casagrande, o bicampeonato paulista de 1982-1983 ficará marcado pelo que se convencionou chamar de Democracia Corinthiana, com muito diálogo no relacionamento entre jogadores e diretoria. A torcida jamais vai esquecer que a Democracia jogava com Solito; Alfinete, Mauro, Daniel González e Wladimir; Paulinho, Sócrates e Zenon; Ataliba, Casagrande e Biro-Biro.

Fonte: Revista Placar.