sábado, 8 de outubro de 2011

Buglê

José Roberto Bougleaux, mais conhecido como Buglê, nasceu em São Gotardo, MG, em 25/07/1944, e seu primeiro clube foi o Real Madri da cidade natal. Já atuando na meia-direita do Clube Atlético Mineiro, destacou-se ao marcar o primeiro gol da história do Mineirão. Nessa partida vestia a camisa da Seleção Mineira em um amistoso contra o River Plate, da Argentina, em 5 de setembro de 1965. Marcou o tento histórico aos dois minutos do segundo tempo e o jogo terminou com o placar de 1 a 0.

Foi emprestado mais tarde ao Santos, onde ficou até meados de 1968, sendo posteriormente vendido ao Vasco da Gama. Entretanto, sua família não se adaptou ao Rio de Janeiro, e ele pediu à diretoria do Vasco que o liberasse para voltar ao Santos, que estaria disposto a pagar 200 mil cruzeiros mais um jogador pelo seu passe.

Atualmente mora em Brasília-DF, onde é funcionário do Ministério Público Federal, e continua batendo sua bolinha no clube do Minas Brasília, ao lado de grandes amigos como o gremista Larry Albérti.

Sobre o ex-meia, Eugênio Moreira escreveu para o jornal "Estado de Minas" o seguinte texto:

"Primeiro gol da história do Mineirão é orgulho do ex-volante do Galo; Santos, de Pelé; Vasco e América. Hoje, ele vive em Brasília e é dono de pousada em Cabo Frio. A história dos 40 anos do Estádio Governador Magalhães Pinto, que serão comemorados no próximo mês, começou com o armador Buglê, autor do primeiro gol do Mineirão, na vitória da Seleção Mineira sobre o River Plate por 1 a 0, em 5 de setembro de 1965."

“Não sabia que aquele momento perduraria tanto. Na época, o gol foi importante pela vitória, mas não tive a noção do quanto valeria, mesmo sabendo que era o primeiro do estádio”, recorda o ex-atleticano. “A placa pelo gol somente foi posta no estádio uns três anos depois.”

O lance foi aos 2min do segundo tempo. “Roubei a bola na nossa intermediária, tabelei com o Dirceu Lopes, mas recebi um pouco à frente. O goleiro Gatti saiu do gol e o zagueiro Ramos Delgado estava na jogada, mas eles se desentenderam. A bola sobrou para mim e, de fora da área, chutei para o gol vazio”, lembra. A Seleção Mineira, treinada por Mário Celso de Abreu, o Marão, foi convocada somente para aquele amistoso e treinou durante uma semana.

A escalação: Fábio; Canindé, Bueno, Grapete e Décio Teixeira; Buglê, Dirceu Lopes e Tostão; Wilson Almeida (Geraldo, depois Noventa), Silvestre (Jair Bala) e Tião. O River jogou com: Gatti; Sainz, Ramos Delgado, Crispo e Cap (Civica); Matosas, Sarnari e Delém; Cubilla (Lallana), Artime (Solari) e Más. O público foi de 73.201 pagantes.

Buglê considera o primeiro gol no Mineirão a principal lembrança de sua carreira, melhor até que os títulos que conquistou. “Para mim, vale mais que qualquer Copa do Mundo e vou guardá-la até o fim da vida. Tenho uma saudade muito grande daquela época, que era a minha juventude”, diz o ex-jogador, que, aos 60 anos, mora em Brasília, onde trabalha com transporte escolar, e tem uma pousada em Cabo Frio (RJ).

Andrada, Alcir, Clóvis, Moacir, Eberval e Fidélis; agachados: Jaílson, Buglê, Valfrido, Silva e G. Nunes.

Mineiro de São Gotardo, José Alberto Bougleux – ele mesmo optou por aportuguesar o sobrenome, para facilitar – jogava futebol de salão no Cruzeiro, quando foi convidado a treinar no juvenil do Atlético, em 1963. Inicialmente, não aceitou, porque não se havia saído bem num teste no Barro Preto. Mas, logo no primeiro treino pelo Galo, passou do time reserva para o titular. Ficou no clube até 1966. No ano seguinte, foi emprestado ao Santos, de Pelé. E, em 1968, vendido ao Vasco. Ele ficou em São Januário até 1974. Depois de comprar o próprio passe, aos 29 anos, não conseguiu clube e ficou algum tempo parado. Em 1975, defendeu o América por quatro meses, antes de encerrar a carreira.

Foi campeão mineiro em 1963, bicampeão paulista em 1967 e carioca em 1970.

Fontes: Por Onde Anda?; Wikipedia.

Momento na delegacia

Foi na Delegacia da Penha, onde fui parar acompanhando um amigo que tivera seu carro roubado e — posteriormente — encontrado pelos guardas da jurisdição da "padroeira". Antes de mais nada devo declarar que na Delegacia da Penha acontecem coisas de que até Deus duvida. De dois em dois minutos, uma "ocorrência" para o comissário do dia registrar. O comissário, coitado, tem que quebrar mais galho do que um lenhador canadense.

Mal tinha resolvido o caso de uma gorda que fora mordida pelo cachorro da vizinha, ou foi a vizinha que mordeu o cachorro da gorda? Sei lá... já não me lembro mais. O que eu sei é que, mal tinha saído a gorda, e o pessoal em volta comentava a bagunça que a gorda tentou armar no distrito, e já começava o caso do crioulo de duas mulheres.

Para mim, sinceramente, "O Caso do Crioulo de Duas Mulheres" foi o mais bacaninha de todos. De repente entrou aquele bruto crioulo. Tinha quase dois metros de altura, era forte como um touro, e caminhava no mais autêntico estilo da malandragem carioca.

Ladeado por duas mulheres imobilizadas por uma chave-de-braço cada uma, caminhou calmamente até o centro da sala, enquanto as duas faziam o maior banzé, sem que ele tomasse o menor conhecimento. A que ele trazia presa na canhota era meio puxada para o sarará e chamava-o, com notável regularidade, de "vagabundo", "crioulo ordinário", "homi safado" e outros adjetivos da mesma qualidade.

A que estava presa pelo lado direito tinha a chave-de-braço mais apertada pouquinha coisa (devia ser mais presepeira) e, por isso, estava meio tombada pra frente. Dava as suas impressões sobre o crioulo com menos freqüência, mas — em compensação — quando abria a boca, berrava mais alto que a sarará. Sua reivindicação era sempre a mesma: — "Me larga, seu cachorro!" De tipo, era mulata e gordinha.

O bom crioulo nem parecia... Com a calma já assinalada, olhou em volta, bateu os olhos no comissário e adivinhou:

— Tô falando com o comissário?

O comissário respondeu que sim. A voz do crioulo era surpreendentemente fina para um sujeito de sua estatura. Isto dava um ar bem-humorado à cena, assistida pelos presentes: uns 15 ou 20, se tanto. A gorduchinha tentou se desprender. Ele apertou mais a chave e disse fininho:

— Quieta aí — e, virando-se para o comissário: — Boa tarde, doutor. Eu sou estivador e moro aqui pertinho, num barraco de minha propriedade, com estas duas.

— O senhor vive com as duas? — perguntou o comissário.

— Vivo, sim sinhô. Mas isto nunca foi pobrema. Urtimamente, porém, elas todavia dero pra brigá. Eu saio pro trabáio e quando vorto as duas tão cheia de cachaça e começa com ciumera.

— Que ciumera o quê? Eu lá tenho ciúme de você, seu ordinário? — disse a sarará.

O crioulo interrompeu sua explanação à autoridade e falou pra ela:

—Q uieta aí, senão vai levá uma bolacha na frente do doutô.

A sarará não acreditou, cuspiu pro chão, em sinal de nojo e levou aquela tapona definitiva, franca, imaculada. Calou a boca e voltou para a chave-de-braço. O crioulo pigarreou e prosseguiu:

— Pois é como eu digo, doutô. Faz dois dia que num drumo, tá bem? Dois dia sem drumi. Vê se pode. Tudo por causa do bode que essas duas arma quando eu chego... — largou a sarará, colocou a mão sobre o peito, coberto pela camisa de seda amarela. Usava camisa de seda, uma calça de brim ordinário, mas com vinco perfeito e calçava um chinelo de couro cru, que deve ter custado uma besteira, mas na vitrina de qualquer butique da Zona Sul estaria com o preço marcado para 50 contos, no mínimo.

— E elas num tem razão — esclareceu: — Se há um sujeito que num tem preferença sou eu. Elas veve comigo há três ano e num pode ter queixa. É tudo onda delas, doutô. Hoje é minha forga no cais e eu preciso drumi. Eu trouxe elas aqui pro senho prende elas aí. Tá legal? O senho faz isso pra mim? Amanhã quando eu acordá eu venho buscá.

O comissário coçou a cabeça, perguntou a um auxiliar se havia xadrez vago, o auxiliar disse que sim e ele perguntou, para que o crioulo ratificasse:

— Você amanhã passa aqui para apanhar as duas?

— Passo sim, doutô. É só esta noite pra eu podê drumi. Amanhã eu prometo ao senhô que, assim que eu acordá, faço o meu café, tomo um banho e venho aqui buscá elas.

O comissário concordou: dois guardas agarraram as mulheres, que foram lá pra dentro berrando e se debatendo. O crioulo agradeceu ao comissário, virou as costas e foi saindo. Lá dentro, as duas mulheres — longe dele — aumentaram o festival de palavrões em sua homenagem.

O crioulo parou perto de um guarda e perguntou: — Tu que é o prontidão? — o guarda fez um movimento de cabeça afirmativo: — Intão, tu me faz um favô. De vez em quando joga um balde d’água nelas, pra elas esfriá. Amanhã, quando eu vier reclamá a mercadoria, tu leva um "tiradente" pelos serviço prestado, tá?

— Tá! — concordou o prontidão, olhando logo prum canto para conferir a ferramenta de dar fria, ficando notoriamente tranqüilo ao ver um balde velho e amassado, debaixo de um banco.

— Eu lhe agradeço — garantiu o crioulo, com uma pequena reverência. Depois retirou-se naquele mesmo passinho macio, chinelo de couro cru, camisa de seda amarela, frisada pela brisa da tarde. Ia dormir sossegado, no barraco de sua propriedade.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora

O Brasil nazi-stalinista

Vocês se lembram do pacto germânico-soviético. Uma manhã, o mundo vê, em todas as primeiras páginas, a cínica, a deslavada fotografia: — Stalin apertando a mão de Ribbentropp.

Digo sempre que o riso pode comprometer ao infinito. Aqui mesmo, contei o caso daquele ministro que não ria, para não se arriscar. E, diante de tudo e de todos, tinha a mesma cara hirta como uma máscara.

Mas Stalin e Ribbentropp riam, um para outro, e a risonha abjeção estarreceu o mundo.

Ou por outra: — não estarreceu. Em verdade, a manchete, a notícia e o clichê só espantaram uma meia dúzia. Os outros sentiram apenas o medo, o Grande Medo.

Os exércitos alemães esperavam apenas o riso e o aperto de mão. Posso dizer que uma fotografia assassinou milhões. Em seguida, a Polônia foi estuprada. Era a nova Guerra Mundial. E morreram tantos que, no fim de certo tempo, o horror deixou de ser horror. E o que havia, por toda a parte e em todos os idiomas, era o tédio da morte, e do sangue, e das mutilações.

Diria também que os próprios sobreviventes tinham vergonha de estar vivos. A vida tornara-se indigna.

Não era bem isso o que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que Stalin e Hitler se juntaram contra a pessoa humana.

Escrevi que a fotografia matou 100 milhões (não sei se mais, não sei se menos). Mas deixemos de lado o horror numérico. Tanto faz 1 ou 100 milhões de defuntos. Quando se assinou o pacto, eu já trabalhava em O Globo. Li o telegrama ainda na redação.

Eis o que me ocorreu, por outras palavras: — se é possível o pacto germânico-soviético, e se o mundo o aceita, tudo é permitido. Durante dias e até meses, fui devorado por uma obsessão. Parecia-me absurdo que cada um de nós continuasse a fazer sua vida, a escovar os dentes, a tomar café, a jogar nos cavalos etc. etc. O meu sentimento era de que o pacto extinguira toda a vida moral.

E, no entanto, em todo o século, não há um ato tão inteligente, uma aliança tão lúcida, um acontecimento tão natural. Rússia e Alemanha tinham que se entender naquele momento. Tão parecidos Stalin e Hitler, tão gêmeos, tão construídos de ódio. Ninguém mais Stalin do que Hitler, ninguém mais Hitler do que Stalin. Do mesmo modo, como são parecidos os radicais da esquerda e da direita!

Dirá alguém que as intenções são dessemelhantes. Não. Mil vezes não. Um canalha é exatamente igual a outro canalha. Pode parecer que Hitler e Stalin passaram. Nenhuma ilusão mais idiota. Napoleão, o Grande, só foi possível porque a Europa estava saturada de pequeninos napoleões. E o mundo está cheio de Hitler e Stalin liliputianos. No tempo da guerra usava-se muito a expressão nazi-fascismo. Muito mais válido seria dizer-se, ainda hoje, nazi-stalinismo. O pequenino Hitler, ou o pequenino Stalin, tem um íntimo tesouro de ódio. É como se tivéssemos de optar por um ou por outro.

Imaginem que falo pensando no Brasil. Vejamos os brasileiros. Aqui, o radical de esquerda não percebe, ou finge que não percebe, que é um stalinista. O radical, do outro lado, é nazista. A toda hora e em toda a parte, cumprimentamos um pequenino Stalin ou um pequenino Hitler. Instala-se o Brasil do ódio, ou, melhor dizendo, o anti-Brasil. Direi mesmo que o brasileiro está em processo de desumanização.

Imaginem cada um de nós transformado, de repente, na antipessoa. Conheço vários que perderam qualquer semelhança com o ser humano. Aqui abro um parêntese. Não sei se notaram que estou usando uma ênfase, um tom, uma veemência não comuns nesta coluna. Mas explico.

O caso é que, ontem, o Kleber Santos bateu o telefone para mim. Dizia excitadíssimo: — "Imagine, Nelson, imagine!". Sinto a sua dispnéia emocional. E o Kleber, que é um dos nossos grandes diretores de teatro, continua, arquejando: — "Usaram o teu nome! Teu nome!".

Excelente Kleber! Falava como se meu nome fosse um patrimônio, algo de sagrado e intangível como um quepe ou uma espada da Guerra do Paraguai. E, então, mais calmo, contou-me tudo.

Alguém atirara, de um automóvel, na porta do Teatro Jovem, prospectos insultantes. Eu não os li. Mas o meu amigo informa que os panfletos ameaçam e ofendem os artistas. E lá está impresso o trecho de um artigo meu sobre d. Hélder. No seu fervor de amigo, o bom Kleber entende que eu devo repudiar a canalhice.

Aí está por que, desde o começo do presente artigo, sou o mais contrafeito dos colunistas. Se eu apoiasse qualquer ato de violência, da direita ou da esquerda, seria um canalha.

Ao mesmo tempo, é meio humorística a situação de um escritor que, empostando a voz, limpando o pigarro e alçando a fronte, anuncia para o seu público: — "Meus senhores e minhas senhoras, saibam que eu não sou exatamente um canalha". Entendo, ao mesmo tempo, o empenho do Kleber. Sua dispnéia, ao telefone, tinha algo de comovente. Não resisto a um amigo patético. Bem. Vamos lá.

Eu me consideraria o último dos infames se, algum dia, me solidarizasse com a violência. Para mim, a liberdade está acima do pão (e, por isso, o pequenino Stalin ou o pequenino Hitler há de me considerar o mais bestial dos reacionários). D. Hélder e dr. Alceu são contra e a favor da violência. Assumem uma ou outra atitude, taticamente, segundo as conveniências de momento.

Outro dia, li, no d. Hélder, no dr. Alceu e no padre Comblin, que a guerrilha "não adianta". Não se trata de uma objeção moral, religiosa, humana, ou que outro nome tenha. Eles se opõem pela ineficácia. Só.

A dedução é óbvia: — se a carnificina fosse proveitosa, devíamos sair por aí chupando as carótidas uns dos outros. Singular caridade de d. Hélder, do padre Comblin e do dr. Alceu.

Também não aceito o padre de passeata. Quero que me entendam. O padre de passeata é, hoje, uma ordem tão definida, tão caracterizada como a dos beneditinos, dos franciscanos, dos dominicanos e qualquer outra. E está a serviço do ódio. Nunca ninguém verá um gesto meu, ou uma linha, a favor de qualquer terrorismo da esquerda ou da direita.

Agora mesmo cometeu-se um crime contra o teatro brasileiro. Espancou-se a platéia, espancou-se o elenco de Roda viva. Despiram as atrizes. Uma delas estava grávida, e gritou a própria gravidez. Foi arrastada, pisada, chutada.

Começou um Brasil nazi-stalinista.

[24/7/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

A leitora de Marcuse

Não sei se vocês conhecem o meu amigo e editor Alfredo C. Machado. Vale a pena. Eu diria que de todos os brasileiros, vivos ou mortos, é o que mais viaja.

De vez em quando, ligo para o seu escritório. Digo: — "Meu bem, cadê o Machado?". A telefonista, mascando um imaginário chiclete, responde: — "Está em Tóquio". Ou é Tóquio, ou Cingapura, ou Cairo, ou Berlim. E a telefonista fala como se Tóquio fosse ali na esquina.

Nas minhas insônias, que as tenho e crudelíssimas, pergunto, de mim para mim: — "Por que viaja tanto o Machado?". E, de fato, é o único brasileiro que gosta de viajar. Os outros saem do país por imitação, pose ou tédio. Ao passo que, para o Alfredo, a viagem é um dom, uma graça, um destino.

Estivemos juntos, ontem. E já não sei se hoje, agora, neste momento, ele não estará desembarcando num porto qualquer, lá nos mares do Sul. Mas falo, falo, e não digo o essencial. Assim como circula por todas as terras, idiomas e paisagens, o Machado tem o mesmo e fácil trânsito em todos os jornais, em todas as redações. As nossas conversas são picotadas por telefonemas.

E, então, o Machado pede licença e atende. Por exemplo: — ontem. Uma grã-fina liga para o meu amigo. Pedia uma notícia não sei em que jornal. Ora, o Machado podia dizer, simples e lisamente: — "Eu não sou jornalista". Mas ninguém pode exigir que uma linda senhora, e, de mais a mais, capa de Manchete, seja também racional. Ela está acima de qualquer argumento ou raciocínio.

E a grã-fina não se contentava com um único jornal. Seria pouco para a sua fome. Queria que a notícia saísse em todos. E era tal a aflição da capa de Manchete que o Machado quis saber: — "Mas o que é, afinal?". Imagino que, do outro lado da linha, a grã-fina tenha baixado a vista, escarlate de modéstia; e disse: — "Estou lendo Marcuse".

Houve uma pausa, um suspense. No seu espanto, Machado pergunta: — "Como? Como?". A outra suspira: — "Estou lendo Marcuse". E queria que o Machado, que tinha tantas amizades jornalísticas, mandasse publicar que ela, d. Fulana de Tal, lia Marcuse. Era preciso que o mundo, o Brasil, De Gaulle, as amigas, as inimigas, os credores, todos, todos soubessem que ela passava as horas e os dias lendo e relendo Marcuse.

Machado saiu do telefone num radiante espanto; e me perguntava: — "Como pode? Como pode?". Eu, numa curiosidade aflita, queria o nome e, se possível, os dados biográficos da leitora de Marcuse. E quando soube do nome, fiz um risonho escândalo: — "Mas é ela? Ela?". Sim, era "ela".

E, já num interesse profundo, perguntei mais: — "E vais dar a notícia?". Meu amigo admitiu que sim. Estava disposto ao alegre sacrifício de promover uma leitura e uma leitora tão "pra frente".

E o leitor, que é um marginal do grã-finismo, há de pedir também o nome e, se possível, até uma descrição física da pessoa. Vamos por partes: fisicamente, não sei se é bonita; talvez o seja, talvez não. Ou por outra: — eu diria que é uma falsa bonita, como costumam ser as grã-finas. Já a vi em várias festas. Seu decote lembra o de Elizabeth Taylor. Como se sabe, depois dos vários casamentos, a célebre atriz engordou.

E a leitora de Marcuse tem, precisamente, o decote robusto, bem alimentado, de Elizabeth Taylor. Estou agora em dúvida. Não sei se terei outras informações "físicas" sobre a nossa heroína. Ah, já me lembro.

Tempos atrás, fui ao Estádio Mário Filho ver um Fla-Flu qualquer. Coincidiu que entramos juntos: — eu, por uma borboleta; a grã-fina, por outra borboleta. Mas que faria ela em tal lugar? Realmente, entende tanto de futebol que, entrando no ex-Maracanã, é capaz de perguntar, nervosamente: — "Quem é a bola? Quem é a bola?".

Outra coincidência: — eu, ela e o marido (quinto marido) subimos pelo mesmo elevador. Estávamos amontoados num espaço sufocante e numa promiscuidade vagamente abjeta. Justamente, eu ia lado a lado com a leitora de Marcuse (que ainda não era leitora de Marcuse). Houve um momento em que a olhei, de esguelha. E, súbito, fiz a observação que jamais ocorreu a ninguém: — ela tem narinas de cadáver!

Entendem? Pode ser bonita, e eu admito que o seja. Mas suas possíveis virtudes, físicas e espirituais, não alteram este fato iniludível, fato que está acima de qualquer dúvida, de qualquer sofisma: — tem narinas de cadáver.

E, ali, no elevador, antes de chegar ao sexto andar, eu percebia toda a verdade. A leitora de Marcuse, contando com o atual, teve cinco maridos e só se desquitou do primeiro. Nos restantes casamentos, dispensou ou esqueceu a formalidade do desquite. E o que perturbou sua convivência com os quatro maridos anteriores foram, ouso presumir, as narinas de cadáver.

Eu já não ia dizer-lhe o nome. E, agora, muito menos, já que existe um claro impedimento nasal. Feita a ressalva, volto ao Machado. Saí do seu escritório e, dois dias depois, estou pesquisando as seções sociais.

No fim da leitura, eis a minha conclusão: — "O Machado trabalhou direito". E, de fato, em todos os jornais, menos O Dia e Luta Democrática, estava a notícia borbulhando: — "A sra. Fulana de Tal está lendo Marcuse".

Os simples, os românticos, os que não têm uma certa malícia não imaginam o que é, e como é, o grã-finismo. Dois dias depois, repasso as colunas sociais e lá está: — Fulana de Tal lê Marcuse; Beltrana de Tal lê Marcuse; Sicrana de Tal lê Marcuse. E, de repente, todas as grã-finas, vivas, mortas ou analfabetas, estão lendo Marcuse.

A coisa é tão contagiosa como o foi, outrora, a escarlatina.

A grã-fina que "lê Marcuse", e o confessa por toda a parte, está dando um atestado de ideologia. E, realmente, a conhecida do Machado e minha é esquerdista e radical como as que mais o sejam. Quer violência, não abre mão de sangue. Acha que, sem luta armada, o desenvolvimento é uma absoluta e eterna impossibilidade.

No mais, freqüentou todas as passeatas; foi vista, numa sacada, atirando listas telefônicas. De outra feita, marchou pela Avenida. Só fez uma concessão à própria classe. Foi quando Vladimir mandou a multidão sentar. Ela desobedeceu para não sujar o vestido.

Por fim, o leitor há de querer um informe cultural sobre a nossa heroína. Seria desairoso eu próprio opinar. Prefiro dar a palavra aos fatos.

Certa vez, fui a um sarau de grã-finos no Alto da Boa Vista. Ela compareceu com as suas narinas de cadáver e seu decote de Elizabeth Taylor. Descobri entre os presentes o Daniel Caetano, moreno como um galã do neo-realismo italiano. E havia também um dominicano, vestido de branco, que passava, solene, por entre os decotes. Era um imaculado pavão de arminho.

Alguém falou de Molière. A então futura leitora de Marcuse teve uma dúvida: — "Esse Molière é brasileiro?".

Um pau-d'água grã-fino respondeu na hora: — "Cearense".
[20/7/1968]


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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Os noivos

Tinha eu sete anos. Não havia ainda o Poder Jovem e, pelo contrário, o Brasil estava cheio de setuagenários natos. Muitos nasciam com cinqüenta, sessenta, setenta anos. Por exemplo: — Rui Barbosa. Nasceu de fraque e já conselheiro.

Volto aos meus seis anos. Ou por outra: — sete, eu disse sete. E, um dia, veio morar, perto da minha casa, uma senhora admirável. Na minha infância, assim como os homens eram velhos, as mulheres eram gordas. E d. Ivonete (ou seria Ivete?) teria cem quilos, talvez.

Às sete horas da manhã, já estava vestida de veludo encarnado, um decote de Elizabeth Taylor, pintada como uma máscara. Usava colares, braceletes, diademas, pingentes, o diabo. Para meu gosto, d. Ivonete era mais bonita do que Dorothy Dalton, heroína do cinema mudo. E d. Ivonete era noiva. Aqui começa a singularidade da nova vizinha.

A partir das dez horas, começavam as visitas do noivo. O Fulano passava quarenta minutos lá e saía. Dez minutos depois, voltava. Todavia, ao voltar, o noivo de d. Ivonete tinha outra cara, outro terno, outra gravata, outra idade e, até, outra cor. O movimento entrava pela noite adentro. E vejam como são as crianças: — não me admirava nada, nada, que o noivo mudasse de cara, de terno, de idade, de meia em meia hora.

Até que, um dia, não sei quem denunciou. E o fato é que a polícia foi bater na porta de d. Ivonete. (Segundo se soube depois, quem deu o serviço foi outra vizinha, uma que falava mal de todo mundo. Era outra gorda. Não me lembro do seu nome, nem de sua cara. Só me lembro das gazes enroladas nas canelas, por cima das varizes).

D. Ivonete foi expulsa da rua, do bairro. Arrastada por três ou quatro, esganiçava palavrões. Berrava: — "Vocês vão me pagar! Vocês vão me pagar!".

Só então se conheceu toda a verdade: — d. Ivonete pertencia à mais antiga das profissões. Bem. E o curioso é que esta lembrança nasceu de uma leitura de jornal.

Li, em toda a imprensa, que há um motim de padres. Os padres se revoltam, e contra que ou contra quem, meu Deus? Contra a castidade. Exigem o fim do celibato. Portanto, odeiam a castidade.

Comecei a ler sobre o motim e pensei, vejam vocês, na vizinha da minha infância (cada gesto seu era uma cintilação, um alarido de pulseiras, colares, pingentes etc. etc.). E de d. Ivonete passei para as mulheres que, em todos os tempos e em todos os idiomas, praticaram o amor pago. Disse eu: — "A mais antiga das profissões". Sim, uma profissão de uns 40 mil anos.

Imaginem vocês se, um dia, d. Ivonete e suas colegas de todas as procedências e sotaques resolvessem fazer também sua revolução. Imagino d. Ivonete propondo, em assembléia geral, não um aumento de tarifas. Não. Os preços ainda estão satisfatórios, ainda garantem uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima.

Na minha fantasia, vejo d. Ivonete, como a "Pasionaria" do sexo — propondo a castidade. Ouviram bem? Eis o seu apelo: — castidade para as prostitutas. Os idiotas da objetividade iriam objetar: — "E o passado? E a tradição? E o hábito? E a féria?". Há 40 mil anos que certas mulheres cobram os seus carinhos. Não sei quem disse, certa vez, que o comércio carnal principiou "quarenta anos antes do Nada".

Mas vamos dar rédeas ainda à fantasia. Visualizemos uma passeata de tais mulheres. Carregam faixas, cartazes, com dizeres assim: — "Muerte" a não sei quê. Ou por outra, sei: — ao sexo. "Muerte", portanto, ao sexo. As sacadas atirariam listas telefônicas e cinzeiros sobre as manifestantes.

Estas agradeceriam, entrelaçando as mãos no alto, como os pugilistas. Havia de ser patético ou, por outra, sublime.

Eis o que eu queria dizer: — um movimento de meretrizes a favor da castidade não me espantaria mais do que o motim dos padres contra a castidade. Um, tão absurdo, divertido ou trágico quanto o outro.

E a coisa é tão alucinatória que recebo um telefonema, sabem de quem? Do Palhares, o canalha. "O que não respeita nem as cunhadas" começou, às gargalhadas: — "Você leu? Não leu o manifesto dos padres, pedindo o fim de celibato?".

Conversamos, no telefone, uma hora talvez, ou mais. O Palhares falava mais do que eu. E a sua objetividade começou a me deprimir e a me consternar (por vezes, os canalhas têm um implacável, luminoso senso comum). Simplesmente, o Palhares dizia o seguinte: — "Ah, duzentos padres, ou trezentos, ou mil que sejam, querem casar? Não precisam apelar para a Conferência de Bispos. É simples como água: — vão ali na Ducal, compram dois ternos e substituem a batina pelo terno. E, assim, no crediário, conquistam uma fulminante liberdade sexual".

Lembrei ao canalha que muitos sacerdotes já se vestem como a gente. Ele retruca: — "Então, melhor. Não precisam comprar nada".

Ponderei que os padres queriam casar. O Palhares morria de rir: — "Não precisa casar. Se a castidade não significa nada, nem o casamento. Pra que casamento? Vamos sair por aí como livres atiradores".

Mas houve um momento em que o Palhares falou sério. (O Palhares, grave, pela primeira vez grave!) Disse, amargo: — "Como se põe pela janela uma castidade de vinte séculos? E só agora, 2 mil anos depois, é que descobrem o sexo?".

Por fim, o Palhares fala do próprio caso: — "Por que é que não sou padre? Porque não posso ver mulher. Não posso. Digo a verdade: — não posso. Um dia, cruzei com a cunhada no corredor. Era cunhada. Dei-lhe um beijo. Um ato vil, está certo. Mas nunca quis ser padre. E, se duvidarem, subo numa mesa e digo: — Sou um canalha!".

Parou, um momento, arquejante da própria sinceridade. Tomou fôlego e voltou com outra indignação: — "E o pior é o sindicato!". Atracado no telefone, fez um comício: — "Querem sindicato, descontar para o Instituto? Vão para o cais do porto. Carregar saco é uma solução. O estivador desconta para o INPS. Ótimo. Os ex-padres serão segurados do INPS. E o problema da castidade deixa de existir. Mas pode ser que eles não queiram carregar saco. Ora, o cais do porto não é só estiva. Há o contrabando!".

E, já esquecido de suas fantasias éticas, o pulha está radiante: — "Aí está: — o contrabando. Os ex-padres podem ser  contrabandistas. Uma mina, uma mina! Cigarro americano, lingerie. Há cada camisola, menino! Cremes, o diabo!".

Mas Palhares tinha que ver uma pequena no Leblon e estava na hora. Novamente lúgubre, suspirou: — "Eles não sabem que não há, nunca houve, satisfação sexual. Sábio é o casto".

O que o Palhares queria dizer é que todo mundo tem, claro, suas tensões, suas angústias, seus desesperos. Ao passo que o casto sofre menos e está mais perto da serenidade.

E, antes de se despedir, concluiu o canalha: — "Esses padres não devem casar. Quem traiu um celibato de 2 mil anos há de trair um matrimônio de quinze dias".

[18/7/1968]


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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Teatro de Revista - Parte Final

Parte Final: O Luxo e a Decadência

"Depois de largo período de entrosamento com o samba, o Teatro de Revista se volta para o luxo e abandona a faceta de lançador de sucessos, até que a censura e a televisão o levam à decadência."

Manuel Pinto foi um dos empresários mais bem sucedidos do teatro de revista, no início do século. Coube a Walter Pinto herdar o gosto do pai pelo negócio, fazê-lo crescer e tornar-se um dos mais ricos produtores do setor. Para isso, contribuíram alguns fatores que acabaram por influir na própria cultura popular carioca e, mais remotamente, brasileira.

A fim de ganhar mais dinheiro que o pai, Walter Pinto ousou mais. Investiu, procurou caminhos diferentes, modificou esquemas e teve êxito. Quem se deu mal nesse contexto foi o samba, a médio prazo.

Ao assumir, o novo empresário decidiu que ninguém teria mais destaque que ele em seus espetáculos. Assim, durante anos, uma enorme fotografia sua aparecia no cartaz do teatro e nos anúncios dos jornais, garantindo: Walter Pinto apresenta. E seguiam-se os nomes (sem fotografia de ninguém) dos mais famosos artistas do teatro de revista, em ordem de importância, as vedetes, os comediantes, as modelos, as atrações. Com isso, criou sua marca registrada.

As pessoas não iam ao teatro ver esse ou aquele artista; iam ver um espetáculo de Walter Pinto, o que era sinônimo de qualidade. Ao menos da qualidade que seu gosto passou a impor, modificando inteiramente o conceito de se fazer revista, vigente até os anos 40. Da mesma forma que a Ba-Ta-Clan e outras companhias de revista européias mudaram o formato revisteiro no princípio do século, Walter Pinto voltaria a fazê-lo, nesse momento de transformação.

A diferença foi que, na primeira reviravolta, o samba ganhou espaço para se apresentar. O talento das estrelas estava centrado nas vozes e interpretações, embora a beleza das pernas e demais atributos físicos fossem também da maior importância. Mas, quem não cantasse bem, não se escorasse em um bom samba inédito a cada estréia, teria carreira curta e dificilmente chegaria ao estrelato.

Luxuosa montagem de Walter Pinto, anos 40
Uma das primeiras luxuosas montagens de Walter Pinto, no Teatro Recreio, no Rio de Janeiro, anos 40.
Com o advento da era Pinto, tudo mudou, O eixo do talento foi transferido, o essencial era a beleza física e, principalmente, o desembaraço no trato com o público. Para ser vedete, era fundamental o jogo de cintura, que permitia enfrentar o chamado “número de platéia”. Nele, a atriz, em trajes mínimos, depois da breve introdução de um assunto malicioso, dialogava com a platéia e tinha que ter a necessária rapidez de raciocínio para responder, quase sempre com duplo sentido, a quaisquer perguntas, sem se deixar embaraçar, expondo o espectador ao riso dos demais. Se cantasse um pouquinho, já estava bom. Samba, nem pensar!

Em termos cenográficos, as inspirações eram importadas dos grandes shows da Broadway e dos cassinos de Las Vegas, nos Estados Unidos. O Follies Bergère e o Lido, parisienses, também eram fontes de informações para espetáculos estruturados em monumental aparato, procurando imitar os musicais que Hollywood produzia e distribuía para o mundo.

Com o êxito financeiro, Walter Pinto viajava com freqüência para o exterior, onde, além de comprar luxuosas fantasias para seu guarda-roupa cênico, contratava coristas e vedetes de rara beleza e tipos físicos bastante diferentes das brasileiras, criando forte aura de curiosidade e desejo ao redor delas.

Francesas, inglesas, americanas e, mais modestamente, argentinas eram vistas em geral nas leiterias da praça Tiradentes, antes e depois dos espetáculos, como se estivessem com tranqüilidade em Picadilly Circus, na Broadway, em Pigalle, ou na Avenida Corrientes. Duas brasileiras, porém, conseguiram atravessar a cortina de seda das estrangeiras e marcar seus nomes como as mais importantes vedetes dos meados do século.

Em 1944, Walter Pinto estreou no Teatro Recreio, a revista Momo Na Fila, de Geysa Bôscoli e Luiz Peixoto. A estrela era Dercy Gonçalves, mas, lá atrás, nas últimas fileiras das coristas, alinhava-se uma paraense loira e linda, recém-chegada ao Rio de Janeiro, desquitada e com filhos, cujo primeiro emprego foi-lhe dado pelo empresário Pinto. Na carteira de trabalho, o nome Osmarina Colares Cintra. Em muito pouco tempo, transformou-se em Mara Rúbia (foto logo acima neste artigo), nome que passou a ser escrito em destaque, com luzes, na marquise do mais famoso teatro de revista do Brasil. Mara Rúbia, durante anos, foi apontada pela metade do país como a maior vedete brasileira.

A outra metade tinha favorita diferente. Uma que contava com as preferências de ninguém menos que Getúlio Vargas, presidente da República, que assistia a todas as revistas do Recreio e tinha pendor especial por Virgínia Lane (foto ao lado), a quem deu o apelido que ela adotou para sempre: a Vedete do Brasil. Procedente dos cassinos, tarimbadíssima no “número de platéia”, a pequenina Virgínia tinha tal presença em cena que parecia crescer a quase um metro e oitenta e ombrear-se com as espigadas coristas que Walter Pinto importava do outro lado do mundo, mas que acabavam por servir apenas de moldura à baixinha, dentucinha, mas talentosíssima estrela do Recreio, de mais ou menos 20 anos.

Já não havia definitivamente espaço para o samba, no teatro de revista. Quando um ou outro aparecia, era simples repetição de sucesso já ditado pelo rádio ou alguma paródia política que usava a música de um deles em voga, para criticar alguma coisa ou alguém. Nunca mais um samba inédito foi lançado em um palco do teatro de revista, que agora se refestelava na grandeza e no luxo das bem-cuidadas cenografias, dos guarda-roupas deslumbrantes e na sensualidade de mulheres belíssimas, das quais a arte de cantar era o que menos se exigia.

Enquanto a concorrência à revista se limitou aos shows das luxuosas boates cariocas, da ainda capital da República, confinando-se aos pequenos palcos do Golden Room do Copacabana Palace Hotel, das boates Casablanca, Night and Day, Montecarlo, Fred’s e congêneres, Walter Pinto reinou absoluto na praça Tiradentes, de onde saía para incursões por São Paulo, Belo Horizonte ou Porto Alegre, deixando espaço, por pouco tempo, para companhias menores.

Mas, quando a censura política amordaçou os comediantes do teatro de revista, abrindo as portas para a pornografia explícita, e a televisão roubou-lhe os elencos, pagando melhor, ele, praticamente, encerrou as atividades e com elas um período marcante, que, a partir daí, foi só decadência.

Fonte: História do Samba - Editora Globo; http://teatrobr.blogspot.com

Teatro de Revista - Parte V

Aracy Cortes estréia sua própria companhia em 1931, na praça Tiradentes.
Praça Tiradentes e o teatro de revista

Centro nervoso dos teatros de revista do Rio de Janeiro, a Praça Tiradentes atraía compositores, músicos e cantores, à procura de emprego para seus talentos, nos muitos palcos iluminados, que faziam a cidade sonhar e cantar.

Nos anos 20 e 30, com a popularização do teatro, em particular as revistas, os “musicais”, o cenário teatral no Rio de Janeiro, antes sem oferecer nenhum conforto e com poucas opções de diversão melhorada, se vitaliza. As casas de espetáculo não somente se multiplicam pelos vários espaços centrais da cidade, como se vão adequando aos novos estratos sociais emergentes, principalmente as classes médias.

Dentro desse contexto, a Praça Tiradentes e seu entorno constituíram-se em um dos privilegiados locais para divulgação e circulação dos artistas – em especial, músicos, compositores e cantores – do período. Além de dos teatros João Caetano, Recreio, São José, Carlos Gomes, entre outros, onde se concentravam aqueles profissionais, bares e leiterias também representavam lugares de atração e de encontro para os que buscavam na praça uma oportunidade para exercer profissionalmente seus talentos.

Os mais procurados eram a Leiteria Dom Pedro II e o Café Carlos Gomes, onde hoje existe o Café Thalia, pontos de reunião de compositores como Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito, Wilson Batista, Henrique de Almeida, Roberto Martins, Bidê, Marçal, Jorge Faraj, Ataulfo Alves, Antonio Almeida e tantos outros.

Sabiam eles que, a qualquer momento, poderia surgir a chance de um trabalho ser aproveitado em uma das muitas revistas que eram encenadas nos teatros da praça. Custódio Mesquita, Ary Barroso, Sinhô, André Filho, Francisco Matoso já tinham se consagrado por ali e de repente a sorte poderia aparecer. No caso de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, jamais conseguiram participar das revistas, mas acabaram por se encontrar nos bares da praça e formar uma das mais importantes parcerias da música popular brasileira.

A maioria dos cantores e compositores “ainda do time de aspirantes” freqüentava a Praça Tiradentes, uma espécie de vestibular. Depois de famosos e ganhando dinheiro para pagar elegantes alfaiates, já bem-sucedidos, transferiam-se para o Café Nice ou para o Café Papagaio, ao lado da conceituada Confeitaria Colombo.

Enquanto isso não acontecia, a solução era enfrentar as xícaras de café com leite nos botequins da Praça Tiradentes, compor os sambas em suas mesas, com tampo de mármore e pé de ferro, e aguardar que o sucesso os viesse resgatar dali. Ou que o próprio teatro de revista se encarregasse de os fazer famosos.

Fonte: http://teatrobr.blogspot.com/