quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O batizado

Entre as várias anedotas de caráter regionalista, que correm pelo sertão, ouvi, quando menino, centenas de vezes a seguinte:

Um vaqueiro foi à cidade de Quixeramobim, batizar uma filha de meses. Quando o padre lhe perguntou, junto à pia, qual o nome da menina, respondeu sem pestanejar, diante do espanto da assistência:

- Onça!

O sacerdote sacudiu a cabeça, pôs-lhe carinhosamente a mão no ombro, e disse-lhe que aquele nome era de um bicho feroz e não quadrava bem numa criança, que, quando ficasse moça, seria alvo de risotas e chalaças, por causa do seu apelido.

- Mas eu quero! insistiu o vaqueiro.

O religioso fez outras considerações, a fim de demovê-lo, e terminou perguntando:

- Já viu alguém com nome de fera?

O matuto retorquiu, embatucando-o:

- E o Santo Padre não se chama Leão? Por que minha filha não se pode chamar Onça?

Esta historieta, que parece autóctone, é simplesmente a variante de um raconto peninsular europeu. Pode-se encontrá-la em outras regiões da América e em outra língua. Eu a li no curioso livro do grande escritor peruano Ricardo Palma - Mis últimas tradiciones:

"Trataba-se de cristianar a un niño, y antes de llevarlo al bautisterio, el cura apuntaba, en la sacristia, los datos que consignaria más tarde en el libro parroquial.

- Que nombre le ponemos al chico?

- Por mi - contestó el padrno, - póngale usted Tigre.

- No puede ser - arguijó el párroco.

- Pues entonces, póngale usted Búfalo ó Rinoceronte.

- Tampoco puede ser! Esos son nombres de animales y no de cristianos.

- No moje, padre! Como el Papa se llama León?"

Esse pequeno conto, europeu de nascença, deu, entretanto, origem a um que é a expressão mais perfeita do espírito sertanejo do Nordeste. Vejamo-lo:

Ao perguntar-lhe o padre que nome queria pôr ao filho, já nos braços da madrinha, ao pé da pia, um vaqueiro lhe respondeu:

- Não sei bem, não, senhor; mas desejava um nome grande e bonito, um nome de encher a boca.

- Alexandre? lembrou o vigário.

- Não, senhor.

- Napoleão?

- Não serve, não, senhor.

- Heliodoro?

- Também não serve, seu padre.

- Então que nome há de ser?

O vaqueiro hesitou instantes e, depois, torturando nas mãos a aba do chapéu:

- Seu vigário, eu quero um nome que encha a boca da gente, um nome, assim como este, que ouvi outro dia: Amancebado!
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Fonte: BARROSO, Gustavo. O sertão e o mundo.

Aventuras de um jabuti

Dom jabuti seguia uma vez, distraído, preocupado com os seus negócios, filosofando nas coisas desta vida, por um caminho no meio do mato, quando esbarrou com uma velha e enorme anta, enforcada num laço, que caçadores haviam amarrado. Mais que depressa principiou a roer a corda que prendia o pescoço do bicho, e depois de esconder a corda num buraco, começou a gritar:

— Acode, gente!... acode depressa!...

Dona onça, que passeava na ocasião, foi ver por que motivo tanto gritava o jabuti.

— Que é isso? interrogou.

— Estou chamando gente para vir comer a anta que acabei de caçar agora mesmo.

— Queres que eu parta a anta? Propôs a comadre onça

— Quero sim. Dividirás a metade para mim e a outra para ti, disse ele.

— Então, vai apanhar lenha, para assarmos a carne da anta.

Quando o jabuti voltou, apenas encontrou o couro da anta, e disse:

— Deixa estar, onça velhaca, hás de me pagar algum dia esse desaforo que me fizeste.

Saído dali, andou por muitos dias seguidos. Ia pelo caminho pensando como se vingar da onça, quando se encontrou com um bando de macacos, em cima de uma bananeira, comendo bananas.

— Olá, compadre macaco, atira uma banana para mim, disse o jabuti.

— Por que não sobes? Não és tão prosa, jabuti?

— Vim de muito longe, estou cansado.

— Pois o que posso fazer é ir buscar-te daí de baixo cá para cima, disse um dos micos.

— Pois então, vem.

O macaco desceu, pôs em cima o jabuti, que ali ficou dois dias, por não poder descer.

No terceiro, apareceu uma onça, a mesma que se tinha encontrado com ele perto da anta.

— Olá, jabuti, como subiste nesta babaneira?

— Muito bem, onça.

A onça, que estava com fome, disse:

— Ó, jabuti, desce cá para baixo.

— Só se me aparares na boca, onça. Não quero me machucar, pulando daqui no chão.

A onça abriu a boca e o jabuti deu um pulo, mesmo na goela do bicho, que morreu imediatamente.

Então o jabuti saiu gritando:

— Matei uma onça, meus parentes, vão ver debaixo das bananeiras!...

Uma outra onça que passava, ouviu-o e perguntou:

— Jabuti, que estás dizendo?

— Não é nada, onça, é cá uma cantiga que sei.

E foi procurando um buraco para se esconder.

Assim que encontrou uma furna, parou e disse:

— Onça, sabes o que estava cantando? É isto: matei uma onça. Vá ver em baixo das bananeiras.

A onça correu para pegá-lo, mas o jabuti meteu-se pelo buraco, onde a onça também introduziu a pata, segurando-o por uma das pernas.

— Onça, pensas que apanhaste a minha perna, mas enganaste, apenas seguraste uma raiz.

A onça largou a perna do jabuti que tinha nas garras, e retirou o braço do buraco.

— Ó sua tola, foi a minha perna que seguraste mesmo. Agora vai ver a tua parenta embaixo das bananeiras.

A onça ainda cavou um bocado, para ver se apanhava o jabuti, mas este já estava longe, porque a furna onde entrara era muito funda.

Desde esse dia, a onça anda à procura do jabuti para se vingar, mas até hoje ainda não o encontrou.
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- Pimentel, Figueiredo. Histórias da avozinha. Rio de Janeiro; Belo Horizonte, Livraria Garnier, 1994, p.179-181 (Biblioteca de autores célebres da literatura infantil, 3).

Panacéia indígena

Diz que o pajé da tribo foi chamado à tenda do cacique.

Quando o pajé entrou, o cacique estava deitado meio sobre o gemebundo, se me permitem o termo. A perna do cacique estava inchada, mais inchada que coxa de corista veterana. Tinha pisado num espinho envenenado.

O pajé examinou, deu uns dois ou três roncos de pajé e depois aconselhou:

— Chefe tem passar perna folha de galho passarinho azul pousou.

Disse e se mandou, ficando os índios do "staff" do cacique (cacique também tem "staff") encarregados de arranjar a tal folha.

Depois de muito procurarem, viram um sanhaço pousado num galho de mangueira e trouxeram algumas folhas. Mas — eu pergunto — o cacique melhorou? E eu mesmo respondo: aqui! ó...

No dia seguinte estava com a perna mais inchada. Chamaram o pajé de novo. O pajé veio, examinou e lascou: Hum-hum... perna
grande guerreiro melhorou nada com folha galho passarinho azul pousou. Precisa lavar com água de lua. Disse e se mandou.

O "staff" arranjou uma cuia e botou a bichinha bem no meio da maloca, cheia de água, que era pra — de noite — a lua se refletir nela. Foi o que aconteceu. De noite houve lua e, de manhãzinha, foram buscar a cuia e lavaram com a água a
perna do cacique.

O pajé já até tinha pensado que o chefe ficara bom, pois não foi mais chamado.

Passados uns dias, no entanto, voltaram a apelar para seus dotes de curandeiro. Lá foi o pajé para a tenda do cacique,
encontrando-o deitado e com uma perna mais inchada que cabeça de botafoguense.

Aí o pajé achou que já era tempo de acabar com aquilo. Examinou bem, fez um exame minucioso e sentenciou:

— Cacique vai perdoar pajé, mas único jeito é tomar penicilina. 

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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: GAROTO LINHA DURA - Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975

Os defuntos literários

Todo mundo já ganhou o prêmio Nobel, menos o brasileiro. Não me venham falar em subdesenvolvimento. O Chile e a Nicarágua são mais subdesenvolvidos do que o Brasil. E ambos têm o seu prêmio Nobel. Há quem diga: — "A Nicarágua não existe". Sei lá. Mas, exista ou não, eis a verdade: — existe para a Academia Sueca. O Brasil, não.

E nem importa a nossa tremenda extensão territorial. Este país é uma espécie de elefante geográfico. Mas a Academia Sueca olha para cá e não vê ninguém. Portanto, existimos menos do que a Nicarágua. Mas é uma injustiça. Temos uma massa de intelectuais.

Numericamente, não estamos atrás de ninguém, nem da União Soviética. Na Rússia há, registrados, seis mil e tantos escritores (e o sujeito que não foi registrado não é escritor. Mesmo que tenha escrito A divina comédia, não é escritor). Pode parecer que, numericamente, a União Soviética está na frente do Estados Unidos. Dos Estados Unidos, talvez. Do Brasil, não.

Vocês se lembram da última passeata. Antes do desfile, fui ver a concentração. Levei comigo o Raul Brandão, pintor de grã-finas e igrejas. E espiamos o espaço reservado aos intelectuais. Parecia uma massa de Fla-Flu. Jamais nos ocorrera que a inteligência brasileira fosse tão abundante. No seu horror, o Raul Brandão perguntava: — "Tudo isso é intelectual?".

Fomos olhar outra vez a tabuleta. Lá estava escrito, acima de qualquer dúvida ou sofisma: — "Intelectuais".

Portanto, os intelectuais eram intelectuais. E, então, passo a passo, tratamos de identificar os nossos poetas, os nossos romancistas, os nossos ensaístas, os nossos dramaturgos, os nossos sociólogos, os nossos professores. Eis a lamentável e quase grotesca verdade: — depois de buscas ingentes, não identificamos ninguém. Ninguém? Isso mesmo: — ninguém.

No meio de 20 mil sujeitos, não havia uma cara conhecida.

De repente, o Raul Brandão crispa a mão no meu braço; sussurra: — "Acho que vi a Nara Leão!". O "acho" insinuava uma dúvida. A Nara Leão pode não ser a Nara Leão. Talvez parecida e não a própria. Pergunto: — "Cadê?".

O Raul Brandão procura, procura, e tem de admitir: — "Sumiu". E, então, começamos a reexaminar as caras. (Quem devia estar ali era a Academia Sueca, apalpando, farejando, a literatura brasileira). Se pose é um dado válido, todo mundo ali era Proust, era Joyce, era Balzac, era Cervantes. Uns ficavam de perfil, outros de frente, outros de três quartos, outros punham as mãos nas cadeiras. Atrás de mim, o Raul Brandão gemia: — "Como são inteligentes!". Eram, sim, inteligentíssimos.

Os idiotas da objetividade poderão insinuar que são autores sem um livro, poetas sem uma quadrinha de São João, ensaístas que não lêem, não escrevem, nem pensam. Não importa. A abundância numérica os salva. Enquanto a União Soviética só consegue juntar escassamente 6 mil escritores, o Brasil pode retrucar com 20 mil.

Dirá alguém que toda a literatura soviética atual não merece amarrar os sapatos de Dostoievski. Como não sou crítico literário, deixo de opinar. Mas continua de pé a pergunta humilhante: — por que, com tantos autores, o Brasil jamais foi contemplado com um prêmio Nobel? Não obstante o subdesenvolvimento, que explica tudo, temos campeões mundiais no futebol, no basquete, no hipismo, no tênis, na pesca submarina, no iatismo.

Nas exposições de gado, temos vacas premiadas. As nossas caixas de fósforos ganham medalhas. Se houver um campeonato de cuspe à distância, um moleque nosso há de vencê-lo. Ainda na semana passada, o nosso Botafogo, com três enxertos, goleou de 4 x 1 a grande seleção argentina. Vitória com olé. Fizemos um gol, o último, de oitenta passes. Mas repito: — por que até as vacas, até as caixas de fósforos brasileiras são premiadas, e os escritores, não?

Foi esta, mais ou menos, a pergunta que fiz a um amigo, justamente um dos idiotas da objetividade. Ele vira-se para mim e pergunta: — "Ou não percebeste que a literatura brasileira não escreve mais?". Tomo um susto: — "É literatura e não escreve?".

Exatamente: — a literatura brasileira é literatura, mas não escreve uma linha, uma frase, um verso, nada. Há, por todo o Brasil, um ensurdecedor silêncio literário.

Esbugalhado, perguntei: — "E que faz a literatura brasileira?".

Retruca o idiota da objetividade: — "Faz passeatas".

Todavia, não aceitei a morte literária do Brasil. Corri à Biblioteca Nacional. E tive a crudelíssima surpresa: — o nosso último suplemento literário fechou as portas na abertura dos portos. Volto ao idiota da objetividade; disse-lhe: — "Mas tínhamos um crítico, rapaz de talento, o Álvaro Lins".

E o outro: — "É anterior a José Veríssimo, Araripe Júnior, Sílvio Romero. Álvaro Lins é a nossa maior antigüidade crítica".

Posto diante da evidência objetiva e estarrecedora, acabei por me convencer. Quando se travou a primeira batalha do Marne, e os táxis de Paris salvaram a França, que fazia, aqui, o José Veríssimo?

Fazia crítica literária, indiferente ao mundo que morria, indiferente ao mundo que nascia. E, sem querer, falei num bilíssimo gênero literário: — a crítica. No passado, um jornal podia abrir mão de tudo, menos do seu crítico. E quando aqui desembarcou d. João VI, enxotado por Napoleão, já encontrou o Álvaro Lins, no cais, à sua espera. El Rey perguntou, num gesto largo: — "Como vai o meu caro rodapé?". E o rodapé, baixando a vista, escarlate de modéstia: — "Caprichando, majestade, caprichando!". Foi divino.

Mas tudo isso acontecia antes das passeatas. O último óbito literário, que se conhece, foi o suplemento concretista do Jornal do Brasil. Aí morreu a nossa literatura. O leitor, que é de uma inocência obtusa, há de perguntar: — e por quê?

Resposta: — Morreu porque se politizou. Veio o Vietnã. E, por último, explodiram as passeatas.

Assim como há o padre de passeata, há o escritor de passeata. São os tais estilistas sem uma frase, os tais poetas sem uma metáfora etc. etc. E, súbito, os nossos cafés, bares e boates se povoaram de defuntos literários. Outro dia, no Antonio's, vi um tão defunto que usava algodão nas narinas. Orai por ele.

Temos, ainda, a grã-fina de passeata. No seu guarda-vestidos há 1500 decotes. Já quando houve, na França, a jovem revolução, o marido da grã-fina sentiu-se ameaçado como se fosse o próprio De Gaulle. E, de repente, começa aqui a imitação francesa. Até que um dia a grã-fina diz que vai à passeata. O marido perdeu a esportiva: — "Está maluca? Bebeu?".

A mulher, que só fazia massagem com um copo de cerveja na mesinha, reagiu como "La Pasionaria": — "Eu não sou reaça como você!". O marido tratou de provar-lhe, didaticamente, que a passeata era contra os 1500 decotes. Ela não se convencia, nem a tiro; e, por fim, o marido propôs: — "Vou lá espiar e depois te digo". Assim se fez. O homem viu e, inclusive, participou da marcha até a Candelária. Não descobriu um preto, um operário, um salário-mínimo, mas viu, em compensação, todas as grã-finas da cidade. Voltou convencido de que eram as classes dominantes que desfilavam, sob a chuva de listas telefônicas. Disse à mulher: — "Pode ir à próxima".

Os 1500 decotes estavam salvos.

[13/8/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.