sábado, 31 de março de 2012

Uma guerra maometana no Brasil

Negro muçulmano - Debret
A religião de Maomé e a civilização árabe chegaram ao Brasil através dos escravos importados das regiões africanas de cultura árabe. Tentaram até deflagrar uma guerra santa na província da Bahia, onde eram numerosos.

Davam a si próprios nomes de mussulmis, muçulmanos, mas os outros escravos negros, de origem banto ou congolesa, os denominavam malês, isto é, gente do império africano e maometano do Níger-Mali. Malê era uma corruptela da palavra Malinké, gente de Mali.

Esses escravos muçulmanos pertenciam aos povos haussás ou auçás, nagôs ou jorubas (iorubás), tapas, jejes, grunas, bornos, cabindas, barbas-minas, calabares, jobus, mendobis e benins. Não seguiam ortodoxamente o Corão, porém as práticas duma das seitas do Islã que se espalharam na África. Alguns possuíam certa instrução, muitos sabiam ler e escrever em árabe. Obedeciam a imames, chamados limanos ou alumás, e a marabutos ou santarrões.

As primeiras insurreições desses negros maometanos na Bahia foram preparadas pelos auçás em 1807 e 1809, sendo esmagadas pelo governador, conde da Ponte. Durante os anos de 1813 e 1816 o governador conde dos Arcos venceu duas novas rebeliões desses mesmos auçás. Em 1826, 1827 e 1828 os iorubás se levantaram, foram vencidos e duramente castigados pelas autoridades. Em 1830 nova revolta abortou devido a uma denúncia.

A guerra santa explodiu em 1835. Durante essa época, devido à revolução dos farrapos no Rio Grande do Sul, as províncias do norte, entre elas a da Bahia, estavam desprovidas de tropa. Os mussulmis ou malês aproveitaram essa circunstância favorável prum golpe de surpresa que lhes devia entregar a cidade de Salvador, onde pretendiam chacinar os brancos e proclamar uma rainha negra, a escrava Sabrina, que afirmavam ser uma princesa em sua terra natal.

Pra se reconhecerem, durante a luta, todos deviam usar uma gandura ou camisola branca com cinta vermelha. Todos os documentos dessa grande conspiração, escritos em língua e caracteres árabes, estavam no Arquivo Nacional.

O movimento devia eclodir durante a noite de 24 a 25 de janeiro de 1835, durante os festejos tradicionais no arrabalde do Bonfim, a cuja famosa igreja quase toda a população da cidade costumava ir em peregrinação. Os escravos marchariam de vários pontos sobre a cidade semi-deserta e se apoderariam dos quartéis e pontos estratégicos, semeando, em toda parte, confusão e morte.

Tudo fora minuciosamente preparado em segredo no seio das djemas ou associações religiosas que mantinham os escravos em contato, sob a orientação da sociedade secreta Ohogbo. Escravos libertos, enriquecidos no comércio e pequenas indústrias locais, forneciam arma, munição e dinheiro. Havia escravos organizados em grupos militares e muito bem armados. Mulatas e negras libertas serviam de elementos de ligação.

Duas dessas mulheres se apavoraram na última hora e denunciaram a conspiração às autoridades, que tomaram logo providência de caráter militar. Enquanto reforçavam postos, guardas e patrulhas, os mussulmis já se reuniam nos pontos de antemão combinados. Alguns soldados de polícia, que procuravam escravos fugidos, alarmaram inadvertidamente esses ajuntamentos. Os conjurados se julgaram descobertos e perderam um tempo precioso modificando as ordens e senhas pro movimento, o que permitiu ao governo tomar mais medida de precaução.

Ao começar a madrugada os pretos, armados de chuços, espadas, facas, pistolas e espingardas, se lançaram, em várias colunas, sobre a cidade. Uma dessas colunas atacou o palácio do governo, a segunda o quartel de polícia, a terceira o forte de São Pedro e a quarta a caserna da infantaria de linha. Os poucos soldados que guarneciam esses postos as repeliram com duas ou três descargas. Então, os escravos se espalharam nas ruas da vizinhança, saqueando as casas e matando os moradores.

Uma quinta coluna marchava na beira-mar e foi atacada pela polícia em Água de Meninos. Combate terrível! Os negros se defenderam como heróis. Sua resistência somente cedeu diante do assalto, na retaguarda, que lhes deram os marinheiros dos navios de guerra surtos no porto. Grande número de cadáveres ficaram na praia. Inúmeros ficaram feridos.

Na manhã o movimento rebelde estava inteiramente dominado. Se enchiam as prisões de escravos vencidos. Se instaurou um processo que só terminou nove anos mais tarde, em 1844.

Muitos dos rebeldes presos, condenados à morte, foram fuzilados ou enforcados. Outros receberam pena de prisão mais ou menos longa. Enfim, alguns voltaram à África, mandados pelas autoridades, pois não tinham grande prova contra eles e os reputavam perigosos, capazes de nova articulação. É provável serem esses os sacerdotes maometanos da pretalhada, os chamados alumás ou limanos.

Essa foi a guerra maometana que houve no Brasil e da qual pouca gente tem notícia. Ameaçadora e de curtíssima duração. O povo traduziu a seu modo o nome dos co-participantes dessa frustrada guerra-santa: Malês, gente da má lei, da lei má, más leis.

A lei má era o Corão que, espiritualmente, regia esses pobres negros trazidos de Benim e Senegal, que os antigos cronistas lusos chamavam Çanagá.

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Fonte: "Segredos e revelações da história do Brasil", Gustavo Barroso - Edições O Cruzeiro - 2ª edição - Agosto de 1961.

Natal de sangue

Thomas Cavendish
Naquele dia de Natal do ano da graça de 1591 três navios de velas desfraldadas ao sopro regular da brisa marinha entraram no porto de Santos. Os moradores da vila fundada por Braz Cubas enchiam as igrejas, ouvindo as missas e sermões da grande festa cristã.

De repente o estrondo da artilharia os encheu de espanto e os lançou em confusão nas ruas. Ao mesmo tempo as embarcações miúdas daquela frota despejavam na praia bandos de homens armados de mosquetes e piques, que, soltando gritos espantosos, foram matando quem esboçava resistência, invadindo casas, as saqueando, se apoderando, também, da casa da câmara e ocupando as posições convenientes pra dominar a povoação.

Eram, na maioria, ruivos, de olhos azuis, grandalhões e barbudos. E um clamor correu de boca a boca em toda a população espavorida.

— Os piratas ingleses!

Pertenciam os três barcos à esquadra do famoso ladrão-do-mar Thomas Cavendish: O Roebuck de capitão Cocke, o Desire (Desejo) de capitão John Davies e o Black Pinesse de capitão Stafford. Tendo os mandado na frente, Cavendish ficara de atalaia na ilha de São Sebastião com dois navios: O Leicester de capitão Southwell e o Daintie de capitão Barker. Quando entrou no porto, dias depois, as tripulações dos primeiros estavam de posse da vila e nela se haviam convenientemente fortificado.

Nesse bruxulear do século 16 os piratas ingleses não davam descanso às feitorias e estabelecimentos lusos da extensa e parcamente defendida costa brasileira. Eram pequenos e disseminados no vasto litoral os núcleos populacionais. A Bahia tinha 24 mil habitantes, Pernambuco 20 mil e havia umas 13 mil almas espalhadas em Itamaracá, Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Vicente e Santos.

Esta última vila repelira, em 1581, o ataque do pirata John Whitall com o Minion. Em 1583 fora saqueada por Edward Fenton, que a esquadra espanhola de dom Diogo Flores Valdez, em caminho a Buenos Aires, derrotou e pôs em fuga. Em 1587 Roberto Witrington, com dois navios seus e um do holandês Duarte Esquert, atacara a Bahia, felizmente sem êxito. Em 1595 James Lancaster, associado a Verner, levaria sete navios contra Recife, sendo expulso no fim dum mês de permanência em terra.

Thomas Cavendish era natural de Trimby, Grã-Bretanha, e recebera patente de corsário da rainha Elizabeth, inimiga figadal do império espanhol, sob cujo domínio se encontravam Portugal e o Brasil, quando atacou Santos. Sua profissão de pirata não empanou seu talento de grande navegador. As observações que fez e anotou, nas longas travessias, sobre as marés, as correntes marinhas e o regime eólico no Atlântico, no Pacífico e no Índico enriqueceram consideravelmente o conhecimento náutico de seu tempo.

Saindo da Inglaterra em 1586, pilhou e devastou as colônias espanholas do grande oceano, subindo até a costa da Califórnia e dali rumando às ilhas de Sonda e o cabo da Boa Esperança. Regressou a seu país, carregado de botim, em 1588. Dois anos mais tarde se fez ao mar com destino à costa do Brasil, à frente da esquadra, com que, de surpresa, se apoderou da vila de Santos.

Permaneceu nela cerca de dois meses, tiranizando a população, roubando o que podia, depredando e queimando os engenhos do arredor. Depois navegou ao sul, levando os porões atestados de riqueza. Mas parece que o fato de haver atacado a indefesa povoação brasileira naquele dia santificado do Natal de 1591 trouxe pra ele e seus principais capitães uma verdadeira maldição.

É verdade que, pra Cavendish, o assalto não fora cometido no Natal, que os ingleses respeitam e celebram tradicionalmente, porque, em 1591, já haviam os portugueses adotado o calendário da chamada reforma gregoriana, enquanto na Inglaterra continuava a prevalecer o velho calendário juliano. Assim, o Natal britânico se festejava no dia 25 de dezembro do antigo sistema cronológico, que correspondia no novo, segundo a correção determinada por papa Gregório, em 15 de dezembro. Aliás os ingleses somente viriam a aceitar essa modificação tardiamente, em 1752.

Em 1592 o pirata se apresentou, novamente, diante de Santos. Esperava que a vila estivesse refeita da rapinagem anterior e vinha sequioso de nova roubalheira. Mas dessa vez lhe saiu o ano bissexto, como diz o povo, ou saiu o tiro pela culatra. A população estava alerta e preparada prà luta. Aqueles sinos que repicaram festivamente no Natal do ano anterior, convocando os moradores às cerimônias litúrgicas nas igrejas, então tocaram a rebate, conclamando todos à resistência diante das velas inglesas desfraldadas sobre o mar.

Os piratas ruivos, barbudos e ferozes desembarcaram. Porém foram recebidos por nutrido fogo de pedreiros e mosquetaria, carregados a arma branca, cercados e chacinados sem piedade. Santos tomava sua desforra do Natal triste e sangrento que tivera. Os capitães Southwell, Barker e Stafford morreram no combate e seus marujos e soldados fugiram a bordo, completamente dizimados. Horas mais tarde as velas dos piratas derrotados se apagaram no horizonte e os sinos badalaram no espaço os festivos repiques do triunfo.

Thomas Cavendish entrou em grande fúria e resolveu se ressarcir daquele revés noutros pontos do litoral brasileiro. Não poderia voltar à pátria desonrado e desmoralizado por aquela terrível repulsa, ele que se considerava invencível, um verdadeiro leão-do-mar. Pôs as proas sobre a ilha de São Sebastião mas ali achou a população armada, que o repeliu, também, com novas perdas. Outras perdas e outro revés o esperavam na ilha Grande.

Desfalcado de seus melhores oficiais e aventureiros, com os barcos precisando de refresco e conserto, velejou ao Espírito Santo e entrou na baía de Vitória, ancorando diante de Vila Velha, ao pé do monte íngreme, onde se eleva o pitoresco convento de Nossa Senhora da Penha.

A população entrouxara roupas e alfaias, tudo o que possuía, e se refugiara no seio dos muros conventuais que, do cume do agreste penedo, dominam toda a costa. Os piratas desembarcaram sem achar resistência, porém se viram diante de casas vazias e não encontraram, no arredor, recurso que pudesse minorar a situação. Diante deles Cavendish resolveu atacar e se apoderar do mosteiro e forçar os habitantes da colônia a fornecer mantimento e a pagar resgate.

Todavia pesava sobre ele a maldição do Natal, que violara com o sangue e a rapinagem na vila de Santos. Ao chegar ao pequeno planalto que, do lado do oceano, antecede ao convento, os moradores, armados e organizados, o receberam com uma trabucada que derrubou muitos homens. Os ingleses, enraivecidos, se lançaram a diante em furente investida a arma branca.

Então, houve o milagre: Um cavaleiro armado desceu do céu, que se abriu, mostrando, em resplandecente clarão, o vulto de nossa senhora da Penha e, ajudando os defensores, lhes guiando a carga, acometeu os piratas, lhes deu de rijo e insuflou a todos que o seguiam uma coragem sem limite. Os britânicos recuaram e fugiram aos pendores do morro abaixo, abandonando os mortos, os feridos e as próprias armas.

Lá embaixo, na praia de Vila Velha, diante da gruta, onde outrora vivera o ermitão frei Pedro Palácios, tomaram os batéis e remaram desatinadamente a seus navios. A frota levantou ferro, largou pano, transpôs a barra e se fez na volta do mar. Enfraquecida por tanto revés, após aquela sacrílega vitória de Santos, não podia mais tentar êxito no Brasil e só lhe restava o recurso de regressar, tristemente, à Grã-Bretanha.

Thomas Cavendish não veria mais sua terra natal. Desorientado, baldo de recurso, minado de desgosto e esfalfado pela derrota, foi deperecendo a cada singradura de seus barcos veleiros na travessia do Atlântico e morreu miseravelmente, sendo seu corpo sepultado no mar.

A maldição daquele natal de sangue o perseguira sem trégua.

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Fonte: "Segredos e revelações da história do Brasil", Gustavo Barroso - Edições O Cruzeiro - 2ª edição - Agosto de 1961.