sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Notícia de jornal

Quem descobriu, perdida no noticiário policial de um matutino, a intensa poesia contida no bilhete do suicida? Creio que foi Manuel Bandeira. Sim, se a memória não falha (e, meu Deus, ela está começando a falhar), foi o poeta Bandeira. Ele é que tem o dom da poesia mais forte.

Claro, todos nós somos poetas em potencial, amando a poesia no vôo de um pássaro, na comovente curva de um joelho feminino, no pôr do sol, na chuva que cai no mar.

Mas nós somos os pequenos poetas, os que sentimos a poesia, sua mensagem de encantamento, sem capacidade bastante para transmitir ao amigo, à amada, ao companheiro aquilo que nos encantou.

Então Deus fez o poeta maior, aquele que tem o dom de transmitir por meio de palavras toda e qualquer poesia, seja ela plástica, audível, rítmica; sentimento ou dor.

"A poesia é espontânea" — disse um dia Pedro Cavalinho, o tímido esteta, enquanto descíamos de madrugada uma rua molhada de orvalho e um galo branco cantou num muro próximo. Um muro que o limo pintara de verde. E é mesmo. Tão espontânea, que estava no bilhete do suicida.

Um minuto antes de botar formicida no copo de cerveja e beber, ele rabiscou, com sua letra incerta, num pedaço de papel: "Morri do mal de amor. Avisem minha mãe. Ela mora na Ladeira da Alegria, sem número."

Manuel Bandeira, poeta maior, nem precisou transformar num poema as palavras do morto. Leu a notícia em meio às notas policiais do matutino e notou logo o que podem as palavras. O homem humilde, que fora a vida inteira um espectador da poesia das coisas, no último instante, sem a menor intenção, se fez poeta também. E deixou sobre a mesa suja de um botequim, entre um copo de formicida e uma garrafa de cerveja, a sua derradeira mensagem — a sua primeira mensagem poética.

Num matutino de ontem, num desses matutinos que se empenham na publicidade do crime, havia a seguinte notícia: "João José Gualberto, vulgo "Sorriso", foi preso na madrugada de ontem, no Beco da Felicidade, por ter assaltado a Casa Garson, de onde roubara um lote de discos." Pobre redator, o autor da nota.

Perdido no meio de telegramas, barulho de máquinas, campainha de telefones, nem sequer notou a poesia que passou pela sua desarrumada mesa de trabalho, e que estava contida no simples noticiário de polícia.

Bem me disse Pedro Cavalinho, o tímido esteta, naquela madrugada: "A maior inimiga da poesia é a vulgaridade."

Distraído na rotina de um trabalho ingrato, esse repórter de polícia soube que um homem que atende pelo vulgo de "Sorriso" roubara discos numa loja e fora preso naquele beco sujo que fica entre a Presidente Vargas e a Praça da República e que se chama da Felicidade.

Fosse o repórter menos vulgar ele teria escrito: "O Sorriso roubou a música e acabou preso no Beco da Felicidade."
__________________________________________________________________________ Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.

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