quinta-feira, 25 de abril de 2013

O Hélio e o anti-Hélio


A história dos meus jantares e almoços com o Hélio Pellegrino não é, como pode parecer aos idiotas da objetividade, um problema de menu. (Eu devia estar aqui falando do desfecho do Festival). Mas como ia dizendo: — acima das preferências de cardápio e da voracidade dos nossos apetites, há toda uma complexa, dilacerada, conflituosa relação humana. Não sei se me entendem e tentarei explicar.

Enganam-se os que veem um só Hélio Pellegrino. São dois. Há o Hélio e o anti-Hélio. A alma do meu amigo tem sido palco de uma batalha feroz entre um e outro, entre ele e o seu oposto, entre o verdadeiro e o apócrifo.

Dirá alguém que estou apresentando a figura de um centauro. Exatamente. A metade do Hélio é o Hélio e a outra metade o anti-Hélio. Mas como o leitor é fanático da nitidez, tentarei ser mais claro. O Hélio é a pessoa e o "outro" Hélio a antipessoa. Se, apesar da minha prolixidade, ainda não me entenderam, paciência. O que chamo Hélio do puro, do legítimo, do escocês, é o que me telefonou na véspera dos meus anos.

Dias antes, eu o desafiara a jantar comigo no meu aniversário. Esse repto foi, e aqui o confesso, uma impiedade. Sim, eu sabia que estava provocando uma luta corporal entre o Hélio e o anti-Hélio, ou seja: — entre o poeta e o político. Para minha sádica satisfação, as coisas se passaram como eu previa. Os dois Hélios marcaram um encontro no terreno baldio, à meia-noite, a hora que apavora. Tratava-se de decidir se o poeta e psicanalista devia comer, ou não, um bife comigo. Como era uma rixa crudelíssima, o contra-regra do terreno baldio providenciou um mau tempo de quinto ato do Rigoletto.

Segundo a cabra vadia, única testemunha do fato, o bate-boca teve um fundo de relâmpagos de curto-circuito e de trovões de orquestra. E, como se trata de um centauro humano, as duas metades chegaram ao mesmo tempo. E não houve nem boa-noite. Começaram brigando. Ou por outra: quem brigava, e escouceava, era o anti-Hélio. O Hélio, não. O Hélio legítimo, escocês e não falsificado, é o que há de mais doce, terno, compassivo, luminoso.

Quantas vezes já o vi crispado de misericórdia como um santo. E não resisto à tentação de contar um dos seus gestos exemplares. Eis o caso: na véspera de partir para Lisboa, o Otto Lara Resende estava, na cozinha do Hélio, bebendo um copo de leite. Bebe o leite e, súbito, dá-lhe uma nostalgia total do Brasil. Começa, então, a chorar. Enquanto o anti-Hélio achava aquilo uma papagaiada, o verdadeiro Hélio chora também. Os idiotas da objetividade dirão que um chorava porque partia, e o outro chorava porque ficava. Não, não. O Hélio chorava de graça, chorava por nada. Minto. Ninguém chora por nada e repito: — chora-se por tudo. Devíamos chorar, em massa, em unanimidade, todos por todos. Mas o que importa notar é que o Hélio chora.

Dito isto, voltemos ao terreno baldio. O anti-Hélio esbravejava: — "Você não pode jantar com a besta do Nelson! É um reaça! Acredita nos Dez Mandamentos! É da Igreja velha! A favor da Virgem Maria!". E o verdadeiro Hélio: — "Mas é meu amigo! Gosto dele! Meu chapa!". Dando rútilos coices, dizia o outro: — "É a favor dos 2 mil anos da Velha Igreja e contra os quinze minutos da Nova!".

Dada a exaltação de ânimos, o contrarregra providenciou mais uma meia dúzia de relâmpagos de curto-circuito e outra de trovões de orquestra. A guerra verbal durou até às quatro da manhã. O anti-Hélio batia na mesma tecla: — "Não podes jantar com a reação! Não podes jantar com a Direita!".

Às cinco horas da manhã, o legítimo Hélio capitulou: — "Está bem. Não janto. Mas preciso telefonar. Dou uma desculpa. Afinal, gosto do Nelson, que diabo!". E assim se fez.

O telefonema que me deu o Hélio, na véspera dos meus anos, foi uma página de Os Maias. Disse-me que nada mudara; era meu amigo como nunca; e foi mais taxativo: — "Autorizo você a dizer, no seu artigo, que você continua sendo um dos meus amigos fundamentais!". Mas logo acrescentou: — "Só não posso jantar". Pigarro e ajunta: — "Tenho que ir a Teresópolis!". Eu imaginei o esforço físico que lhe custara fabricar tal viagem contra um pobre e indefeso aniversariante.

Transido de remorso, disse ainda: — "Na semana que vem jantamos juntos. Sem falta. Faço questão". E eu: — "Deus te abençoe, Hélio, Deus te abençoe".

Dia dos meus anos, todo mundo jantou comigo, menos o Hélio. Sua ausência estava sentada na minha alma. Mas, e o jantar posterior, combinado e datado por ele mesmo, com a ênfase dos compromissos fatais? Sim, o jantar mais esperado do que o Messias? Interditado pelo anti-Hélio, o meu amigo não me telefonou nem para perguntar: — "Morreste?".

Mas dizia eu que o nosso jantar não era uma questão de menu. Em verdade, seu telefonema foi um momento da consciência humana: enquanto meu obscurantismo não me proíbe de tê-lo por amigo, seu socialismo o impede de jantar comigo. E eu sou, segundo ele próprio o declara com a sua bela voz de barítono, um dos seus "amigos fundamentais".

Durante anos, os casais Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende não faltaram na minha mesa de aniversariante. Lembro-me de que, na véspera da morte de Getúlio (eu faço anos a 23 de agosto), abri a minha casa, de par em par, para recebê-los. Tudo por quê? Porque o anti-Hélio, o Hélio falsificado, não admite que eu insinue as minhas objeções ao d. Hélder e ao dr. Alceu.

Tenho uma vizinha gorda que, nos grandes impasses, costuma dizer: — "Deixa pra lá, deixa pra lá". E eu ia esquecer tudo, quando, domingo, li o artigo do meu amigo e irmão sobre Lúcio Cardoso. Ora, fui, se assim posso dizer, amigo de infância do grande romancista. E pensei, antes de começar a leitura: — "Ainda bem que o Hélio escreve sobre o Lúcio". Ora, um artigo sobre Lúcio Cardoso teria de ser sobre Lúcio Cardoso. O diabo é que o testemunho sobre o ficcionista foi escrito pelos dois Hélios e, portanto, padece de contradições e equívocos horrendos.

Começa assim: — "Lúcio Cardoso morreu no dia 23 de setembro e, na tarde desse mesmo dia, foi enterrado". As primeiras linhas são do poeta. Em seguida, vem o político, o anti-Hélio: — "Nesse dia, intelectuais, artistas, professores, sacerdotes, mães de família participavam de um ato público contra a realização da VIII Conferência de Exércitos Americanos". Só não entendi por que "mães de família" e não também "pais de família". De resto, uma mãe de família, quando em ação política, não está ali em função de sua maternidade, mas por motivos outros, políticos, ideológicos etc. etc.

"La Pasionaria" tinha uns oito filhos, mas seus partos nada tiveram a ver com o seu fervor socialista. Bem.

Eis o que eu queria perguntar: — por que falar em passeata, por que, se Lúcio Cardoso era a antipasseata, era a negação da passeata? E, de repente, comecei a rilhar os dentes, no pavor de que me saísse um súbito e aviltado Lúcio Cardoso de passeata. Tempos atrás, escrevi que a única solidão da literatura brasileira era Guimarães Rosa. Não falei de outras e totais solidões: — de Lúcio Cardoso, Octavio de Faria etc. etc.

Em dado momento, diz o artigo: "[...] capitalismo que amesquinha, degrada e coisifica o ser humano" e, portanto, "o amor humano". O articulista diz isso fremente, com o seu tão conhecido gosto pelo patético. Realmente, o capitalismo não é flor que se cheire e muito menos o socialismo que as passeatas propõem. Amigos, às vezes um pequenino, um ínfimo, um individualíssimo episódio abre uma janela para o infinito.

Vejam o nosso jantar. O capitalismo nunca me impediria de jantar com o Hélio. E o socialismo é tão assassino do amor que não o deixa comer um bife comigo, um doce e franciscano bife.

[8/10/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo:  Companhia das Letras, 1995. 

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