sábado, 7 de dezembro de 2013

Dicionário Enciclopédico da Noite

Dicionário Enciclopédico da Noite, sabem lá o que é isso? Pois trata-se de obra de peso, desde já fadada a um êxito estrondoso, pois que é assinada por Stanislaw Ponte Preta (e ao escrever este nome, as teclas da nossa intemerata remington semi-portátil ficam embargadas de emoção).

O fero cronista, sempre no seu crescente desejo de melhor informar — porque não dizer? de melhor faturar na caixa deste vespertino, resolveu escrever com o auxílio de sua prodigiosa memória, a qual é capaz mesmo de dizer quantas vezes o Francisco Landi tirou terceiro lugar em corridas internacionais, um dicionário enciclopédico da noite, e com nomes de gente, nomes de lugares, nomes de coisas, comidas, bebidas, música, tudo aqui enfim que rebola pela noite a fora.

Cumpre esclarecer que a ortografia adotada em toda a obra é decorrente, não só do acordo ortográfico de 1943, celebrado entre o Brasil e Portugal, como também do acordo pornográfico, celebrado entre os cafés e boates desta cidade. E’ nosso dever também explicar que o “Dicionário Enciclopédico da Noite” cumpre religiosamente as “Instruções para a organização do vocabulário ortográfico da Língua Portuguesa”, aprovadas unanimemente (até o Olegário aprovou) pela Academia Brasileira de Letras, na sessão de 12 de agosto de 1943 e que não transcrevemos porque não foram redigidas por Stanislaw Hushi Ku-Roy (é assim que nos chamam em Tóquio) e, consequentemente, seria fastidioso para vocês lerem.

A título de amostra, para dar exemplo, aos que, menos afortunados pela sutil deusa da inteligência, ainda não compreenderam, Stanislaw Puente Negra (é assim que nos chamam em Barcelona), vai fazer uma pequena demonstração.

Na letra “P”, por exemplo, encontramos:

PETIT CLUB — Restaurante dirigido por Mirtes Paranhos. Fica na esquina das ruas Cinco de Julho com Constante Ramos em Copacabana. Tem uma galinha assada pontepretana.

Na letra “C”, por exemplo, temos:

CLÔ PRADO — Senhora da sociedade paulista, que faz umas peças fraquinhas, fraquinhas, mas que tem muito público.

Na letra “B” podemos encontrar:

BORORÓ — Veterano boêmio desta praça. Meirinho de dia e compositor de noite. Autor de um dos mais célebres choros do mundo: “Da cor do pecado”, ou seja, a cor de Luana (Teu cenário é uma beleza!). O epigrafado tem cabelos brancos e está geralmente acompanhado pela polícia, isto é, o delegado Melo Moraes (vide letra “M”), seu mais dileto amigo.

Na letra “P”, entre outros vocábulos e citações, estão:

PIPOCA — Coisa que criança adora e que serve também pra gente beber mais. Alguns bares do Rio costumam servir pratinhos sub-reptícios de pipoca com as bebidas. A gente vai comendo distraído, fica com a língua salgada e pede mais bebida.

PICADINHO — Um dos pratos mais servidos nas boates do Rio. O picadinho foi imposto à freguesia por ser um prato econômico: o filé de ontem é o picadinho de hoje e a almôndega de amanhã.

Na letra “A” — e esta é a última que damos como exemplo — encontramos:

AURY CAHET — “Show-girl’, irmã de Auny Cahet.

AUNY C’HFT Show-girl”, irmã de Aury Cahet.

Esquema

Com o auxílio — repetimos — de sua invejável memória, faceta marcante de sua exuberante personalidade, o maior baluarte da imprensa sadia colecionou, com a displicência que o caracteriza, 1.200 páginas que serão publicadas paulatinamente nesta coluna, à medida que o tempo for passando e o assunto for faltando.

Brasileirismo e regionalismos da noite, expressões idiomáticas, termos populares e de gíria, gente que vive nos “riversides” da vida, gente que aproveita a noite para beber, gente que aproveita a noite para trabalhar (garçons, “maitres”, “cabareties”, músicos, cantores, coristas, atores, produtores, contrarregras, cenógrafos, fotógrafos, “taxis-girls”, etc.), estrangeirismos usuais, abreviaturas, frases elucidativas, explicações sobre expressões anômalas (gente anômala também), o étimo de grande número de palavras usadas mais à noite, pronúncia em casos duvidosos, tudo com esclarecimentos do campeão mundial da crônica.

Aguardem pois

Assim sendo, Stanislaw Scwartz Brik (é assim que nos chamam em Jerusalém) pede aos leitores universais que tenham calma e aguardem a breve publicação parcelada do “Dicionário Enciclopédico da Noite”.


Fonte: Última Hora, de 27/04/1956 — Reportagem de Bolso - Stanislaw Ponte Preta

Zezinho e o coronel

O coronel Iolando sempre foi a fera do bairro. Quando a patota do Zezinho era tudo criança, jogar futebol na rua era uma temeridade, porque o Coronel, mal começava a bola a rolar no asfalto, saía lá de dentro de sabre na mão e furava a coitadinha.

Teve um dia que Zezinho vinha atacando pela esquerda e ia fazer o gol, quando o Coronel da Polícia Militar, naquele tempo ainda capitão, saiu e cercou o atacante, de braços abertos. Parecia um beque lateral direito, tentando impedir o avanço adversário. Por amor ao futebol, Zezinho não resistiu, driblou o garboso militar e entrou no gol com bola e tudo. Ah! rapaziada ... foi fogo.

O então Capitão Iolando ficou que parecia uma onça com sinusite. Ali mesmo, jurou que nunca mais vagabundo nenhum jogaria bola outra vez em frente de sua casa. E, com a sua autoridade ferida pelo drible moleque do Zezinho, botou um policial de plantão em cada esquina, durante meses e meses. No bairro havia assalto toda noite, mas o Coronel preferia botar dois guardas chateando os garotos a deslocá-los da esquina para perseguir ladrão. Isto eu só estou contando para que vocês sintam o drama e morem na ferocidade do Coronel Iolando.

Prosseguindo: ninguém na redondeza conseguia entender como é que aquele Frankenstein de farda podia ter uma filha como a Irene, tão lindinha, tão meiga, tão redondinha. E entre os que não entendiam estava o mesmo Zezinho, cuja patota, noutros tempos, batia bola na rua.

Muito amante da pesquisa, Zezinho foi devagarinho pro lado da Irene. Primeiro um cumprimento, na porta do cinema, depois um papinho rápido ao cruzar com ela na porta da sorveteria e foi-se chegando, se chegando epimba... desembarcou os comandos. Quando a Irene percebeu, estava babada por Zezinho. Se ele quisesse ela seria até o chiclete dele. Claro, o namoro foi sempre à revelia do Coronel Iolando, que não admitia nem a possibilidade de a filha olhar pro lado, quanto mais para o Zezinho, aquele vagabundo, cachorro, comunista. Sem paqueração não há repressão.

O pai não sabia de nada e a filha foi folgando, até que chegou um dia, ou melhor, chegou uma noite a Irene tinha saído para ir à casa da Margaridinha, de araque, naturalmente, e na volta, depois de ficar quase duas horas agarrada com Zezinho debaixo de uma jaqueira, na segunda transversal à direita, permitiu que o rapaz a acompanhasse até o portão. Coincidência desgraçada: o Coronel Iolando estava se preparando para sair e ir comandar um batalhão no combate à passeata de estudantes. Chegou à janela justamente na hora em que Irene e aquele safado chegavam ao portão. Tirou o trabuco do coldre e desceu a escada de quatro em quatro degraus, botando fumacinha pelas ventas arreganhadas. Pareciaum búfalo no inverno. Não deixou que o inimigo abrisse a boca. Berrou para Irene:

— Entre, sua sem-vergonha — e a mocinha escafedeu-se. Virou-separa o pobre do Zezinho, mais murcho que boca de velha, ali encolhidinho, e agarrou-o pelo cangote, suspendendo-o quase a um palmo do chão, e o rapaz ia até dizer "Coronel, o senhor tirou o chão de baixo de mim", pra ver se com a piadinha melhorava o ambiente, mas não teve tempo:

— Seu cretino — berrou Iolando — está vendo este revólver?(Zezinho estava). Pois eu lhe enfio o cano no olho e descarrego a arma dentro da sua cabeça, seu cafajeste. Está entendendo?(Zezinho estava). E vou lhe dizer uma coisa: está proibido de continuar morando neste bairro. Amanhã eu irei pessoalmente à sua casa para verificar se o senhor se mudou, está ouvindo?(Zezinho estava). Se o senhor não tiver, pelo menos, a cinquenta quilômetros longe desta área, eu passarei a enviar uma escolta diariamente à sua casa, para lhe dar uma surra. Agora suma-se, seu inseto.

O Coronel soltou Zezinho, que, sentindo-se em terra firme, tratou de se mandar o mais depressa possível. O Coronel, por sua vez, deu meia-volta, entrou em casa, vestiu o dólmã e avisou à filha que quando voltasse ia ter. O Coronel Iolando foi cercar os estudantes na passeata, houve aquela coisa toda que os senhores leram nos jornais e, quando retornou ao lar, encontrou a esposa muito apreensiva:

— Não precisa ficar com esse olhar de coelho acuado, sua molenga — avisou Iolando — Eu só vou dar uns tapas na sem-vergonha da nossa filha.

— Eu não estou apreensiva por isso não, Ioiô (ela chamava o Coronel de Ioiô), Eu estou com pena é de você.

— De mim??? — o Coronel estranhou.

— É que a Irene e o Zezinho saíram agora mesmo para casar na igreja do Bispo de Maura. Deixaram um abraço pra você.


Fonte: "Gol de Padre e Outras Crônicas" — Stanislaw Ponte Preta — Editora Ática.