quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Ouro maldito


“Chegara eu a Pirapora, nas margens do caudaloso São Francisco, em noite quente, mas de chuva forte, que me não permitiu sair do hotel. Após o jantar, servido o café, levantei-me da mesa juntamente com outro hóspede, que ali morava e que comigo havia palestrado durante a refeição. Parecia ele homem viajado e experimentado nas coisas do sertão mineiro.

Para mim, que ali ia pela primeira vez, a palestra era instrutiva e convinha mantê-la. Indagando o nome, disse-me ele que se chamava João José de Freitas, mas que era conhecido em todo o sertão como Januário, por ter nascido na cidade de Januária, que, rio abaixo, dista de Pirapora cerca de 40 léguas.

Dando-lhe também o meu nome, convidei-o a passarmos a uma larga varanda que dava para o lado do rio. Mas Januário preferiu uma sacada que dava para a mata, justamente em sentido oposto ao rio.

Acompanhei-o sem protestar, mas estranhando intimamente aquela preferência. O arguto olhar do sertanejo, não escapou, porém, a minha estranheza íntima.

Logo que nos sentamos em cômodas cadeiras com fundo tecido em cordas de palha de milho, ofereceu-me um cigarro da mesma palha, e, em preâmbulos, foi dizendo:

— Seu doutor está estranhando eu não querer ficar do lado do rio ... Mas é que o rio me entristece muito, principalmente à noitinha.

— Mas por que lhe acontece isto, seu Januário?! ... ao senhor, que parece homem habituado ao sertão e aos caudalosos rios deste grande vale!

— É por isto mesmo, seu doutor. Quem vê essas águas não sabe quanta coisa triste elas escondem. Vou lhe contar um fato que se passou comigo e que mostra a razão por que me entristeço quando estou à beira dum rio.

Há dez anos, éramos três amigos: eu, o Raimundo e o Celestino; todos três muito unidos pela luta constante na vida que levávamos como faiscadores e garimpeiros. A busca ao ouro e ao diamante, nas cabeceiras deste grande rio e nos seus afluentes, era nossa única ambição. Onde havia notícias dessas coisas preciosas, lá estávamos nós trabalhando, algumas vezes em vão; outras, porém, ganhando muito, mas sempre gastando muito, também. O que vem fácil, fácil vai.

Um dia soubemos que neste rio São Francisco, um pouco abaixo daqui, entre as bocas das Velhas e do Jequitahy, havia naufragado uma embarcação que vinha de longe, lá do Paraúna, e ia para Juazeiro, na Bahia, levando pesada carga de ouro e de diamantes.

Um parente do Raimundo tinha assistido ao naufrágio e marcou o lugar certo em que afundou o barco. Era junto a um grande penedo a pique, que forçava o rio a fazer uma volta ligeira e perigosa, em garganta apertada com muita correnteza.

Nós três vimos logo ocasião de fazer fortuna. E resolvemos empreitar o salvamento do tesouro, com a vantagem de metade do que pudéssemos arrancar do fundo do rio.

No momento, porém, era impossível. O rio estava de enchente e as chuvas turvavam muito as águas. Tivemos que esperar mais de mês pela vazante.

Já sabíamos, porém, que o lugar era fundo e dava muita piranha, de modo que o trabalho só podia ser feito com escafandro. Por isso, enquanto esperávamos a vazante, o Celestino foi ao Juazeiro buscar um escafandro de um amigo dele, que o havia comprado a um embarcadiço em São Salvador.

Mas o escafandro tinha os tubos de borracha vermelha, cor que atrai a piranha, porque ela pensa que tudo que é vermelho é carne. Resolvemos, entretanto, o caso, cobrindo os tubos com tiras de metim preto.

E quando as águas baixaram e clarearam, lá fomos nós rio abaixo, com o nosso barco bem equipado para trabalhar o escafandro.

A princípio, custamos a encontrar sinais do barco naufragado. Mas, descendo um pouco, a uns trezentos metros abaixo do lugar marcado pelo cunhado do Raimundo, conseguimos ver a proa de um barco atolado no fundo. Não podia ser outro.

Como prevíamos, o lugar era muito fundo. Só mesmo com escafandro se podia chegar lá.

Amarramos o barco com espias em terra, porque a poita não tinha firmeza para aquela corrente e precisávamos fixar bem o barco, porque o trabalho era demorado.

Feito isso, tiramos a sorte qual de nós três tinha que descer no escafandro. Caiu para o Raimundo, que não fez cara-feia. Era assim que nós trabalhávamos.

A princípio, tudo ia muito bem. Mas, quando o Raimundo fez o sinal de que tinha tocado o fundo, dando dois puxões no cabo, depois de o afrouxar duas vezes, o metim preto, devido ao roçar do cabo, soltou-se num pedaço, descobrindo o tubo vermelho. E logo apareceu uma piranha assanhada. Bati na água com o remo para espantar o peixe. Mas o Celestino achou melhor mergulhar na água para tornar a cobrir o tubo. Não achei bom: disse a ele que as piranhas podiam vir em maior número.

Celestino espiou bem, e, vendo que era uma só, perigosa para o tubo e não para ele, resolveu mergulhar, com o que acabei concordando.

Mas, tão logo ele caiu n’água e pegou o tubo, o rio empreteceu... Saia piranha de todo lado. . . Não se via mais nada. . . Bati com os remos n’água, sem resultado. . . Em vez de subir o Celestino só subia sangue.

Experimentei o tubo: já estava cortado. . . Puxei o cabo: estava partido.

Larguei a bomba de ar ... larguei tudo, para pegar nos dois remos, ... e entrei bater na água como um possesso.

Bati muito, bati até não poder mais, não sei por quanto tempo. . . Em um ponto que a luz era mais forte, vi, no meio do bando de piranhas esfaimadas, os ossos do Celestino, já quase esqueleto só! ... os pelos me arrepiaram em todo o corpo e eu não vi mais nada!

Quando voltei a mim, estava deitado no fundo do barco, que, tendo quebrado as amarras, vogava rio abaixo, volteando em um remanso.

Tinha perdido um remo ... estava escurecendo ... fiquei apavorado!

Com o remo que ficou, remei febrilmente para terra, e conseguindo encostar o barco na praia do remanso, saltei horrorizado, fugindo a todo fôlego daquelas águas tenebrosas.

Andei algumas léguas, sem rumo, até que, perdendo as forças cai sem sentidos. Só acordei ao amanhecer, como quem acorda de terrível pesadelo. Não queria acreditar no que tinha acontecido.

Procurei, mais calmo um pouco, tomar alturas, para saber onde estava. Fiquei satisfeito quando vi que estava na estrada que vai da Barra do Jequitahy a Guaicuhy, cidade em que morava um amigo nosso, o Zé Vicente. Para lá fui, mais morto do que vivo.

Em duas palavras, contei o caso ao Zé, bebi um trago, comi um pouco, sem saber o que ... e só fui descansar no barco do Zé, com quem desci o rio novamente, até o lugar sinistro.

Mas não podíamos ver mais nada. Por ter chovido nas cabeceiras dos rios, a água, que na véspera era clara, estava agora barrenta. Deitamos garateias a tarrafa, para ver se agarrávamos qualquer coisa: o Raimundo no escafandro ou os ossos do Celestino. Nada conseguimos.

Todos os dois ficaram lá, e o tesouro também. Ninguém tentou tirar do fundo aquele ouro maldito!

Depois dessa luta em vão, seu doutor, me veio um febrão, que durou mais de 15 dias. E a toda hora eu via o Celestino e o Raimundo lutando com as piranhas, ao mesmo tempo que uma voz me dizia que aquilo era o prêmio da ambição.

Que horror! seu doutor! Nunca mais peguei na bateia, nunca mais entrei num vau ...

— Mudou de vida, então, seu Januário? — perguntei eu para mudar a conversa.

— Mudei, sim, senhor. Agora só compro e vendo ouro e pedras, com pequeno lucro ... E vou bem, graças a Deus. Só quando me lembro dessas coisas é que ainda me arrepio todo, como o senhor está vendo.

— Mas, seu Januário, para que recorda essas coisas tristes?

— É a sina, seu doutor! ...

— Mas vamos esquecer ‘— concluí eu. — Vamos tomar um trago e jogar um pouco ...

— Ah! o senhor gosta do trago ?!. Então vai beber produto da minha terra.,. Oh! Quincas! (Grita o Januário para o copeiro). Traz aí uma “Januária” ... daquela que a tia Zeferina mandou no Natal! ...

Servida a bebida, pura de cana, fomos jogar, tendo eu desviado a conversa do caso macabro.  Mas, quando acabamos e nos demos o “boa-noite”, o Januário falou:

— Seu doutor, quero um favorzinho seu.

— !?! ...

— Reze um Pai-nosso pro Raimundo mais o Celestino ... Eles merecem.”

(Original de Felix Sampaio)


Fonte: revista semanal "Carioca", de 12/09/1936.